WOODY ALLEN

ENTRE A GENIALIDADE E A POLÉMICA 





Diz que não é músico, só toca por prazer, mas continua a dar concertos por toda a Europa. Garante que nunca revê os seus filmes depois de os concluir, não lê as críticas e não valoriza os elogios. Aos 88 anos, tenta passar pelos pingos da chuva das polémicas que, hoje mais do que nunca, dividem as opiniões a seu respeito por causa de um escândalo que o persegue há décadas, entre aqueles que o acusam de atitudes impróprias com uma filha adotada e os defensores que contestam as acusações e fecham os olhos ao que se escreveu na imprensa de Nova Iorque. Woody Allen passou por cá para falar de cinema e tocar clarinete. 



Mário Augusto 

Fotografias - todos os direitos reservados 



Os novos tempos não correm de feição para Woody Allen. Desde sempre criativo e com uma produção constante, o realizador de filmes únicos como Manhattan e Annie Hall está prestes a completar 88 anos (nasceu a 30 de novembro de 1935) atormentado por acusações polémicas e com dificuldade em reunir apoios para novos projetos. O público que habitualmente reconhece a sua genialidade e a capacidade para escrever e realizar um filme por ano tem vindo a afastar-se das mais recentes produções. Os tempos vão mudando. Já realizou cinquenta filmes, e o último, Golpe de Sorte, foi rodado com apoios europeus e em língua francesa. A última vez que filmou na América foi com o apoio da Amazon Studios, que pagou a produção e ficou sem saber o que lhe fazer quando reapareceram as acusações na imprensa, em particular no New York Times, que recuperou uma velha história de assédio sexual, ainda por cima explorada e divulgada pelo seu filho biológico, o jornalista Ronan Farrow, filho de Woody Allen e de Mia Farrow. Ronan tem o apoio da mãe, que há anos continua a não dar tréguas às denúncias que não foram validadas pelo tribunal de Nova Iorque. Em Hollywood, Woody Allen é um nome tóxico para a indústria e, se já não era fácil garantir o retorno do investimento nos seus mais recentes trabalhos, o risco hoje é bem maior. 

Mudam-se os tempos, persistem os boatos em torno de um dos mais reconhecidos nomes do cinema americano. Na nossa conversa recente em Lisboa havia apenas uma condição para a entrevista, não falar das desenterradas notícias de abuso sexual, uma história com mais de trinta anos e que os recentes casos «meetoo» trouxeram de novo para a discussão pública com consequências que, já se percebeu, podem atormentá-lo para o resto da vida.


Aceitando as regras, fui a jogo para a entrevista ao já cansado senhor Woody Allen. O foco e interesse da entrevista agendada foi a obra, os filmes, o seu método criativo. 


Ele gosta de explicar as ideias, é lento na conversa e responde com a serenidade de quem parece nada ter a esconder sobre a carreira. É como uma troca de ideias no café em frente a uma câmara, onde ele se espreguiça, boceja, olha em redor como se não estivesse a ser filmado.



Serenamente ainda com genica

A entrevista foi marcada para as onze da manhã num hotel de Lisboa. Na noite anterior tinha tocado no Porto com a sua New Orleans Jazz Band, e pela fresca seguiu para a capital cumprindo um agendamento de entrevistas, uma passagem pela Cinemateca para trocar ideias com Ricardo Araújo Pereira e, ainda nessa noite, iria dar mais um concerto no Campo Pequeno. Não admira, por isso, que aquela postura refletiva entre perguntas fosse a pausa da mente em dias cheios na passagem por Portugal.

Enquanto aquecia a conversa recordei a primeira vez que o entrevistei, no final da década de 1990. «Isso já foi há muito tempo!», disse ele, esboçando um sorriso. Esse nosso primeiro encontro foi em Paris, no Le Bristol, no coração do bairro de moda e design na capital francesa. Foi por lá que voltou a andar, agora para filmar. 

É o primeiro filme que dirige rodado em língua francesa e na cidade que o recebe sempre de abraços abertos, onde ainda consegue ter apoios para os seus filmes. As suas palavras pausadas têm o peso certo da sabedoria de quem vê e analisa o mundo de um modo peculiar e atento.


Antes fazia poucas viagens, tinha pavor de andar de avião, detestava os jornalistas e a exposição mediática, achava um desperdício de tempo estar um dia inteiro a repetir as mesmas ideias em fastidiosos junkets, as breves entrevistas com jornalistas curiosos. 


Golpe de Sorte é o 50.º filme de uma longa carreira mas diz que, se o deixarem e derem apoios, ainda tem mais histórias para contar:


«Tenho várias histórias em mente se a minha saúde permitir... gostava de continuar a filmar, mais um ou dois filmes.» 

E garante que gostava de voltar a filmar em Nova Iorque: «Eu tenho uma boa história, talvez a mais interessante que escrevi, para rodar em Nova Iorque. Devo dizer que tenho uma dúzia de ideias, mas gostava que o meu próximo filme pudesse ser feito em Nova Iorque», revela no início da nossa conversa. 


Ao fim destes anos todos, mantendo o entusiasmo na carreira, ainda acredita que é importante ter sorte... quando olha para trás com cinquenta filmes já feitos?


Sem dúvida... a sorte é muito importante. É verdade que é preciso trabalhar duro para ter as coisas sob controlo, mas a sorte é importante. Não interessa como trabalhamos, temos que ter sorte e boas ideias para desenvolver.


Qual é o processo criativo que segue no desenvolvimento dos seus argumentos tão originais e com um olhar atento a todas as inquietações?


A ideia pode surgir-me de forma muito variada… uma ideia simples, um recorte de jornal, uma história que me ocorre de repente ou episódios da vida real que me contam. Depois, dou uns passeios pelo bairro onde moro, vou anotando coisas num papel, vou pensando e a ideia vai-se desenvolvendo. Essa é a parte mais difícil do processo: desenvolver a ideia. Quando começo a escrever, a coisa torna-se mais fácil.


É muito metódico nesses processos criativos... 


É a minha vida, é isso que faço para viver. Quando comecei a trabalhar como autor, e já lá vão muitos anos, escrevia textos para televisão. Escrevia para um programa em direto para os serões das sextas-feiras. Regressava ao escritório na segunda-feira e tinha que me sentar à secretária e começar tudo de novo. Era um show semanal, era preciso pensar em novas ideias, novas piadas, não havia escolha, tinha mesmo que produzir algo... (faz uma pausa de reflexão)... e na sexta-feira seguinte o programa estaria de novo no ar com toda a América a ver. Essa responsabilidade ensinou-me que não se pode estar à espera da inspiração, não se pode ser temperamental... percebe-se que é um trabalho, um emprego. A rotina deu-me algum traquejo e um processo metódico de escrita.


Li que nessas rotinas de escrita começava por escrever tudo à mão, desde sempre com o mesmo tipo de esferográficas e os mesmos cadernos. Percebi também que esta é a pergunta mais recorrente, todos os jornalistas estão curiosos por vislumbrar no método algum pormenor distintivo de criação. 


Vou desiludi-lo, mas não tem nada de surpreendente, eu escrevo sempre à mão, umas doze páginas de cada vez, e só depois é que passo essas folhas manuscritas à máquina de escrever. 


E sempre a mesma máquina, a sua velha máquina de escrever?


É verdade, continuo a escrever à máquina, na mesma máquina que tenho, acredite-me, há pelo menos sessenta anos. É uma Olympia, se quiser pode considerar que faz parte do meu processo criativo. Tudo o que escrevi ao longo da vida – contos, argumentos, crónicas – saiu daquela máquina, que continuo a tratar como se fosse uma peça única.


Por essa Olympia já passaram milhares de folhas a transbordar de criatividade e diálogos únicos e inesquecíveis. Só entre filmes escritos e realizados contabilizam-se quase cinquenta longas-metragens, invariavelmente retratos em pormenor da natureza humana e muitas vezes caricaturas das relações interpessoais na sociedade contemporânea. A música do teclado dessa máquina de escrever acaba por ser o filtro das mil e uma histórias que vai anotando...


Normalmente, quando começo estou cheio de notas, boas ideias e algumas mais terríveis. Tudo isso vai ganhando forma ao escrever na máquina. Eventualmente de uma ideia que surge faço um filme... mas nem sempre isso acontece. Por vezes resulta bem, outras vezes nem por isso. É claro que sempre que escrevemos um guião ou um filme, fazemos o melhor que sabemos, mas eu sei que nem sempre fiz os melhores filmes, tenho essa consciência.


É um autor desprendido do legado que deixa ao ponto de referir que pouco o apoquenta pensar no que venham a fazer com os seus filmes...


Não me preocupo mesmo nada com o que fica para a memória do cinema dos meus longos anos de trabalho. Não me importa o que as pessoas possam achar de mim e da minha obra. Quando já não 

estiver cá, o único valor que os meus filmes vão ter será apenas uma fonte de rendimento que deixo para a família. Se não precisarem do dinheiro, podem agarrar em todos esses filmes e destruí-los numa trituradora de papel... Quando eu partir, tudo acabou. Uma vez perguntaram-me se, como autor, sonhava poder viver no coração das pessoas, e eu disse que sinceramente preferia viver no meu apartamento. É desse sossego que eu gosto na vida que levo.


Quando completou 80 anos, o jornal The Hollywood Reporter fez-lhe uma grande entrevista, como que um balanço de carreira, e surpreendeu nas respostas pelas escolhas que fez entre todos os filmes que escreveu e filmou. Desses registos guardo duas respostas impressionantes sobre o que pensa da obra. Disse que «apagaria quase todos os filmes que fiz. Guardaria apenas uns seis ou oito». E entre esses, «talvez A Rosa Púrpura do Cairo, com certeza Match Point e Maridos e Mulheres, provavelmente Zelig e também Meia-Noite em Paris».

Não cabem na lista Annie Hall nem Manhattan?


São filmes que realizei há tanto tempo que já não lembro tão bem. Mas digo-lhe que não gosto tanto deles como o público. Recordo-me que quando vi Manhattan logo que o finalizei, fiquei bastante dececionado. Falei com Arthur Krim [na altura era o diretor da United Artists] e até propus: «Se não o lançarem, prometo que vos faço outro filme de borla.» Ele respondeu: «Estás louco, gostamos do filme e fizemos um investimento. Pedimos dinheiro emprestado para o fazer. Não podemos gastar milhões e não exibir. Não faz sentido.» Depois, Manhattan estreou e acabou por fazer muito sucesso. É uma questão de sorte, por vezes recebemos créditos por coisas que não controlamos.


A música, a par do cinema, é, como se sabe, a sua paixão maior... 


É mais divertido tocar clarinete do que escrever argumentos ou simplesmente um texto. Sinceramente, acho que é mais agradável estar ali a tocar do que a escrever, porque a interpretação musical é menos cerebral, é puro prazer. Eu não sou músico, toco porque gosto, estou rodeado de grandes músicos, toco por hobby, por diversão.


Lisboa ou Porto? Quem sabe...

Não faz a mínima ideia por quanto mais tempo irá conseguir financiamento para os seus filmes. Nunca teve uma relação fácil com os executivos dos estúdios. 


Entre outros pormenores de negociação e que põem os executivos à beira de um ataque de nervos, nunca aceita qualquer tipo de interferência nos seus argumentos. É sempre assim?


Não abdico das minhas condições de trabalho, que são uma regra para mim. Nunca dou os guiões a ler aos produtores ou aos estúdios. Eles bem reclamam, dizem que não podem dar dinheiro a um projeto do qual nada sabem, mas eu nunca cedo. Eles apenas têm que pagar e confiar. Não lhes dou sequer a possibilidade de interferirem na escolha do elenco dos filmes, mas aceito sugestões. É essa fase do processo que mais me custa, o ter que negociar, ter reuniões e almoçar com os produtores. É verdade que as coisas nem sempre correm bem. Aliás, desde há uns anos que tenho cada vez mais dificuldade em conseguir financiamento para os meus trabalhos. Como alguns filmes não obtiveram bons lucros na bilheteira, torna-se mais difícil garantir os apoios. A minha sorte é que faço um cinema de produção muito barata: são filmes intimistas e raramente gasto mais de 15 milhões de dólares.


Mas como vê a produção americana atual?


Sinceramente, esta não é uma altura muito boa para o cinema americano. Os filmes que são desenvolvidos... custam milhões e isso coloca muita pressão nos resultados. Só se fazem blockbusters e isso é terrível se falha, é uma catástrofe para os estúdios, se funciona bem também ganham muito dinheiro. Hoje é tudo streaming. Ainda me lembro que antigamente o filme ficava meses nas salas, hoje são duas semanas e avança logo para a televisão e para o streaming. Isso é menos interessante para os realizadores, pessoalmente não vejo isso com agrado para os meus filmes.


Filmar por cá, em Lisboa é sempre uma hipótese em aberto?

Primeiro, tinham que me convidar e pagar o filme... Teria que ter uma ideia que resultasse bem nesse cenário. Acho que se conseguia. Para isso tenho que estar uns tempos no lugar, sentir a cidade.


E no Porto?


Achei a cidade lindíssima, nunca tinha estado no Porto, adorei. Foi a primeira vez que lá estive, pensava que era uma pequena vila piscatória e fiquei espantado porque é uma cidade grande e bonita. As pessoas são simpáticas. Gostava de ter podido ficar mais uns dias, trazer a família, porque adorei apesar de ter sido uma passagem breve. 





Share by: