200 ANOS DE CAMILO

200 ANOS DE CAMILO


Criador e protagonista da novela passional portuguesa



É um dos mais reconhecidos e influentes escritores da literatura portuguesa, com uma escrita vibrante, um humor sarcástico e um domínio absoluto da língua. Camilo destacou-se principalmente no romance, foi um dos primeiros grandes autores do realismo em Portugal, com influência e marcas do romantismo, foi o nosso primeiro escritor profissional. Em apenas um ano (entre 1862 e 1863) publicou onze novelas e romances, atingindo no seu tempo uma notoriedade inigualável, com mais de 260 obras publicadas, incluindo os famosos romances, mas também contos, peças teatro e ensaios. Para Jorge de Sena, «ele foi trágico, épico, lírico, satírico – tudo isso foi Camilo». Romancista mas também historiador, tradutor, cronista, dramaturgo, crítico apaixonado, boémio e, no fim, tragicamente amargurado. 


Mário Augusto



Tinha um talento natural para contar histórias, apanhar com uma mestria subtil a realidade do país e a sociedade do seu tempo com uma capacidade prodigiosa para efabular a partir da observação das vidas que o rodeavam, um olhar especial para narrativas marcadas pela intriga e análises passionais. O seu estilo influenciou diversos escritores vindouros, sem nunca lhe tirarem o lugar como um dos mais reconhecidos autores portugueses. Teve uma vida intensa e trágica que terminou em suicídio, desiludido pela cegueira gradual e as amarguras da vida numa derradeira atitude de desespero, reforçando ainda mais a tristeza do seu fim, mas também o fascínio que se mantém em torno da sua imagem e obra. 

Os romances de Camilo retratam bem a sociedade portuguesa do século xix, abordando – às vezes com algum escândalo – temas como o poder da Igreja, o papel da mulher, a injustiça social e a influência da aristocracia decadente onde ele próprio se movimentava.

Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, na Rua da Rosa, a 16 de março de 1825, em berço de família aristocrata. O pai, Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco, teve vida errante entre Vila Real, Viseu e Lisboa. Era de Trás-os-Montes, nascido na casa dos Correia Botelho, conhecidos como os «Brocas». Estudou em Coimbra e apaixonou-se por Jacinta Rosa do Espírito Santo Ferreira, com quem não se casou mas de quem teve os seus dois filhos, Carolina Rita e Camilo. 


A história de vida do escritor começava como o drama dos seus livros: só seria perfilhado pelo pai já com 4 anos e é referido no seu registo como «filho de mãe incógnita». Na verdade, ficou órfão muito cedo, de mãe quando tinha 2 anos e de pai aos 10, dramas que lhe moldaram um carácter de eterna insatisfação com a vida. Com a morte do pai, em 1835 foi recebido por uma tia de Vila Real. Voltaria mais tarde a Lisboa para viver com a irmã Carolina Rita, que era um pouco mais velha. A cartilha do saber e o discernir das letras foi-lhe incutido por dois padres de província que lhe deram as bases de educação e escola. 



O tumultuoso pinga-amor


Pelo que se sabe, estudando os seus desabafos de escrita, marcava-o um carácter instável, uma atitude irreverente que o atraía para amores tumultuosos. Casou cedo, tinha 16 anos quando desposou a jovem de 15, Joaquina Pereira de França, filha de um lavrador abastado de São Cosme, em Gondomar. Foi um casamento de pouca dura, apercebendo-se que não era mais do que uma fugaz paixão de jovens. Lá no Douro voltam as paixões acesas, como a que viveu com Patrícia Emília do Carmo de Barros, e chegaria a envolver-se de amores com a freira Isabel Cândida.

Camilo abandona Patrícia fugindo para uma casa da irmã num lugar recatado em Covas do Douro, e é por essa altura que opta por se mudar para o Porto com vontade de se formar em Medicina. Era só vontade, estudava pouco, vivia a boémia da cidade, acabando por desistir do curso para mais tarde optar por Direito. 

O que se sabe é que a partir de 1848 faz vida de folião com múltiplas paixões acesas, era um bon vivant que corria os salões burgueses, altura em que se dedica também ao jornalismo. 


A Camilo nunca lhe escapava uma escaramuça, algum ativismo político ou um bom tema para esgrimir ideais. Em 1850, defende o seu ponto de vista ao entrar na famosa polémica entre Alexandre Herculano e o clero, publicando a defesa de um dos lados com o texto “O Clero e o Sr. Alexandre Herculano”. Lá ficou de candeias às avessas com Herculano, pouco agradado com a posição de Camilo. Viveu intensamente as tensões políticas e sociais do século xix em Portugal. Ele tinha opiniões fortes e chegou a ser preso algumas vezes. A sua vasta literatura também reflete essas turbulências sociais e políticas.


A confirmar que ele se agastava em polémicas por dá cá aquela palha, atestando o seu mau feitio, mas também uma certa atitude altruísta, António Cabral escreveu, a 3 de junho de 1890, no jornal portuense O Primeiro de Janeiro: «No mesmo hotel em que estava Camilo, achava-se um medíocre pintor espanhol, que perdera no jogo da roleta o dinheiro que levava. Havia três semanas que o pintor não pagava a conta do hotel, e a dona, uma tal Ernestina, ex-actriz, pouco satisfeita com o procedimento do hóspede, escolheu um dia a hora do jantar para o despedir, explicando ali, sem nenhum género de reservas, o motivo que a obrigava a proceder assim. Camilo ouviu o mandato de despejo, brutalmente dirigido ao pintor. Quando a inflexível hospedeira acabou de falar, levantou-se, no meio dos outros hóspedes, e disse: — A D. Ernestina é injusta. Eu trouxe do Porto cem mil reis que me mandaram entregar a esse senhor e só ainda não o tinha feito por esquecimento. Desempenho-me agora da minha missão. E, puxando por cem mil reis em notas, entregou-as ao pintor. O espanhol, surpreendido com aquela intervenção que estava longe de esperar, não achou uma palavra para responder. Duas lágrimas, porém, deslizaram-lhe silenciosas pelas faces, como única demonstração de reconhecimento.»

Era assim o nosso escritor, homem de coração impulsivo e muito palpitante nas coisas do amor repentino.



Escândalo e paixão eterna


Para além da escrita ficou famoso também por apaixonar-se por Ana Plácido, também conhecida por Ana Augusta – jovem portuense que escrevia romances, crónicas, poemas e contos, colaborando ativamente com alguns jornais portugueses e brasileiros. Foi o grande escândalo do Porto em meados do século xix. Corria o ano de 1850, aos 19 anos Ana Augusta foi obrigada pelo pai a casar-se com o comerciante endinheirado Manuel Pinheiro Alves, já com 43 anos, um regressado do Brasil e onde fizera fortuna. Desiludido com as dores da paixão gorada, Camilo tem aí uma crise de misticismo e espiritualidade e chegou mesmo a ingressar no seminário, que viria a abandonar em 1852. 


O brasileiro, marido da sua amada, inspira e é referência em algumas das novelas do escritor, dando-lhe quase sempre um toque de carácter depreciativo. Em 1856, Ana Plácido, insatisfeita com o casamento, continua seduzida por Camilo, e iniciam uma proibida relação de adultério. Dois anos depois, em 1858, ainda casada, ela teve um filho com reconhecimento de paternidade pelo marido Pinheiro Alves, mas que muitos estudiosos camilianos especulam que, na verdade, podia ser realmente filho de Camilo. O marido, sabendo da traição, fez queixa às autoridades denunciando o adultério, imperdoável pela lei vigente, e Ana Plácido é presa a 6 de junho de 1860. Camilo foge à justiça enquanto pode, mas acaba por se entregar a 1 de outubro desse mesmo ano. Acabam por passar quase um ano na cadeia, ambos no mesmo aljube da Relação do Porto, onde ficam a aguardar julgamento. 

Naquela época, o caso deu muito que falar e emocionou a opinião pública pelo descritivo dos jornais e o seu conteúdo tipicamente romântico de paixão contrariada, à revelia das boas tradições e regras de imposições sociais. 

Depois de julgado a 16 de outubro de 1861, o casal acabou absolvido do crime de adultério e o juiz, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (pai de Eça de Queirós), dá-lhes ordem de liberdade apesar do escândalo que afrontou as práticas sociais do seu tempo. Camilo e Ana Plácido passaram a viver juntos em Lisboa, tendo depois mais dois filhos, Jorge Camilo, nascido em 1863, e Nuno Plácido, em 1864. Na cadeia escreveu imenso, conheceu e fez amizade com o famoso ladrão Zé do Telhado. Durante a prisão foi também visitado por D. Pedro V, era já um famoso escritor. Uma das obras que de lá saiu foi Memórias do Cárcere e, claro, Amor de Perdição, tinha ele 38 anos. 


Com uma família tão numerosa para sustentar, Camilo começa a escrever a um ritmo alucinante. Logo em 1864, após a morte do ex-marido de Ana Plácido, a família mudou-se para a casa de São Miguel de Seide, uma quinta deixada em herança ao primeiro filho. A 9 de março de 1888, vinte e sete anos depois do início da relação escondida, Camilo e Ana Plácido casam-se finalmente. 


O escritor passa os últimos anos da vida ao lado de Ana Plácido, porém sem encontrar a estabilidade emocional por que tanto ansiava. Uma existência marcada pelo seu reconhecimento como autor mas com múltiplas dificuldades financeiras, além da doença e filhos incapazes. Ele considerava Nuno um desalinhado boémio e o outro filho, Jorge, era um jovem enlouquecido. Dão-lhe sempre grandes preocupações e inquietudes várias. 

Desde 1865 que os problemas de visão estavam a agravar-se e sofria de diplopia e cegueira noturna. Era uma das consequências da sífilis e outros problemas neurológicos de que padecia. Uma cegueira gradual que o impedia de ler e de trabalhar, desencadeando um certo desespero depressivo. Com o passar do tempo e as preocupações com os sintomas da doença a aumentarem, Camilo, desesperado, consultou os melhores especialistas do seu tempo à procura da cura que ninguém lhe deu. 


Não suportando as privações e o desengano de um reconhecido médico que se deslocou à casa de Seide, em desespero Camilo suicidou-se com um tiro de pistola na cabeça, a 1 de junho de 1890, tinha 65 anos. Passou horas de agonia e morreu em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão. 


Foi o primeiro escritor de língua portuguesa a viver exclusivamente da sua grande produção literária, conseguindo manter um estilo próprio do agrado do público leitor do seu tempo, mas desenvolvendo excelentes narrativas e uma escrita muito original. Ele sabia usar a ironia e a crítica social com grande habilidade. Com o seu melhor e reconhecido romance, Amor de Perdição, o autor de certa forma também revela o escândalo da sua situação de adultério e amor vivido com Ana Plácido. 


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