A TODO O VAPOR!

A TODO O VAPOR!



TIVE A OPORTUNIDADE DE CONDUZIR O ÚLTIMO COMBOIO A VAPOR DO MUNDO EM SERVIÇO REGULAR. 


Martin Fletcher DE THE FINANCIAL TIMES 



São 05h20 e estou a dormir profundamente numa pensão em Wolsztyn, uma pequena cidade no oeste da Polónia. A luz acende-se do lado de fora do meu quarto. Ouço Howard Jones, o meu anfitrião, gritar: «Está a funcionar! Está a funcionar!» Demoro um segundo a perceber o que se passa, depois salto da cama e visto-me à pressa. 

Trinta minutos depois, Jones e eu chegamos à estação de comboios. Está frio, escuro e chove, mas o certo é que está uma enorme locomotiva a vapor preta na plataforma, a expelir nuvens de vapor e fumo da chaminé. 

Subimos para a cabine, onde Andrzej e Marcin, o maquinista e o fogueiro, esperam com a roupa suja e os bonés de basebol. Precisamente às 06h03, o grande monstro de aço parte da estação, a fazer barulhos e a ranger, a tremer e abanar, a bufar e resfolegar enquanto ganha lentamente velocidade. 

Deste modo, o último serviço programado de comboio a vapor de bitola normal do mundo, o último principalmente para passageiros regulares, e não para turistas, inicia a sua viagem matinal. 

É também o último onde novatos como eu podem aprender a conduzir. Mas estou a adiantar-me.

Foi há quatro anos que um amigo de um amigo, que era amante de comboios a vapor, me falou das locomotivas a vapor de Wolsztyn e de Howard Jones, o curioso inglês que tinha feito muito para as manter em funcionamento com a criação de cursos para aqueles que ansiavam conduzi-las. 


Intrigado, contactei Jones, que me convidou a visitá-lo em fevereiro de 2020. Reservei os voos, mas no dia antes da partida Howard ligou-me para dizer que nenhum dos três comboios estava a funcionar. Depois veio a Covid-19 e os confinamentos. 


Recuperei os planos no início de 2022 e reservei um voo para uma visita de três dias à Polónia. Aí, conheci Peter Lockley, um entusiasta de comboios – também conhecidos como gricers. O advogado aposentado de Leamington Spa, no centro de Inglaterra, agora viaja pelo mundo a fotografar locomotivas a vapor por diversão e, como eu, queria experimentar conduzir uma. Mas quando cheguei a Wolsztyn, Howard deu-me a notícia de que apenas uma das locomotivas estava a funcionar. 


O comboio a vapor de Wolsztyn para Leszno, a cerca de 45 quilómetros, circula duas vezes por dia nos dias úteis durante a maior parte do ano, às 06h03 e às 11h41. Como cheguei tarde a Wolsztyn, optei por dormir e fazer a segunda viagem. Foi um erro: a locomotiva teve um problema na bomba de travões na primeira viagem e a seguinte foi cancelada.


Isso deu-me tempo, pelo menos, para ser introduzido na estranha e secreta fraternidade dos gricers – a maioria deles com idade suficiente para se lembrar dos comboios a vapor britânicos. Cresceram com os livros de O Comboio Thomas e os Seus Amigos, e filmes como Breve Encontro e O Comboio que Levava Saudades. 


A casa de hóspedes onde Howard acomoda os visitantes está repleta de memórias das locomotivas a vapor: sinais, bonés de revisor, lanternas de guarda, placas de plataforma, comboios em miniatura, DVD de comboios e fotografias. Lockley e eu explorámos o «depósito» de locomotivas de Wolsztyn, um local onde há uma roundhouse magnífica, uma espécie de placa giratória de comboio que não via desde a infância. Havia também dezoito locomotivas a vapor em vários estados de reparação. Lockley conhecia todas. «Aquela», disse, «é uma Pm36-2, construída na Polónia em 1937, a última do género no mundo». 

Durante um almoço de sopa de cogumelos selvagens e veado numa mansão rural aristocrática anterior à guerra, Howard, agora com os cabelos prateados e 70 anos, contou-me a sua história. Nascido e criado em Londres, o pai levou-o a ver uma rara locomotiva a vapor Clan Stewart na Estação de Liverpool Street quando ele tinha 5 anos. Costumava entrar furtivamente em depósitos de comboios com nomes como Cricklewood, Neasden e Old Oak Common para admirar as locomotivas.

«No verão passava o tempo a observar os comboios e nos sombrios dias de inverno era um comboio em miniatura no quarto», contou. Quando o último serviço regular de comboios a vapor para passageiros terminou no Reino Unido em 1968, «foi quase como perder um amigo próximo», confessou Jones.


Saiu da escola justamente quando começou a era das férias baratas. Trabalhou para algumas agências de viagens e, mais tarde, fundou uma empresa que organizava viagens de fim de semana para gricers britânicos em comboios históricos na Alemanha e na Polónia. Foi assim que descobriu o depósito de Wolsztyn.


As locomotivas a vapor sobreviveram durante mais tempo na Polónia comunista do que noutros lugares porque o país produzia muito carvão barato e a sua substituição por locomotivas a diesel era cara. As locomotivas a vapor ainda eram comuns na década de 1980, e três ou quatro oficinas de manutenção sobreviveram até 1990, mas em 1994 Wolsztyn era a última em funcionamento.


«Estava apenas a aguentar-se», disse-me Jones. Naquela altura, a empresa de Howard – e o seu casamento – passavam por dificuldades, por isso decidiu seguir o coração. Em 1997 mudou-se de Inglaterra para a Polónia para tentar salvar Wolsztyn e as locomotivas a vapor. «Foi um momento eureka. Alguém disse: “Não vais durar mais de cinco anos.” Foi um empurrão nas costas. E aqui estamos, vinte e cinco anos depois.»

Prometeu angariar fundos para o depósito se a empresa estatal de caminhos-de-ferro continuasse a operar os comboios. Ligou-se à surpreendentemente grande comunidade britânica de amantes de comboios. Convenceu quarenta gricers a investirem 2000 libras cada (aproximadamente 3000 euros na altura) e, em troca, podiam passar uma semana por ano, durante os cinco anos seguintes, a aprender a conduzir os comboios. Instalou-se em Wolsztyn e começou a organizar viagens de comboio a vapor por toda a Polónia.


No início de 2000, estava a contribuir com cerca de 50 mil libras por ano para o depósito de Wolsztyn e a atrair visitantes de todo o mundo para a cidade polaca. Em 2006, foi-lhe atribuído o título de Membro do Império Britânico pelo seu trabalho e pelo contributo para as relações entre o Reino Unido e a Polónia. «Senti-me um pouco como uma fraude porque tudo o que tinha feito era brincar com comboios», disse Jones. Hoje, o serviço de Wolsztyn para Leszno transporta cerca de 50 mil passageiros por ano, dos quais apenas cerca de 5000 são turistas.


Perguntei a Howard o que achava tão fascinante nas locomotivas a vapor. 


«Elas são o mais parecido com uma máquina viva, como dragões a respirar», explicou. «Nenhuma é igual. É preciso aprender como cada uma delas se comporta.» Chama-lhes «elas» e insulta-as. «É preciso muita habilidade para conduzir uma locomotiva a vapor, mas qualquer um pode conduzir uma a diesel ou elétrica.» Jones, aliás, sabe conduzir uma locomotiva a vapor mas não um carro.


Na minha segunda manhã, a bomba de travões ainda estava avariada. Eu devia apanhar o avião para casa ao meio-dia do dia seguinte. Por isso, um jovem funcionário foi enviado numa viagem de ida e volta de onze horas e mil quilómetros a um museu ferroviário no sul da Polónia para obter uma peça. Quando regressou, a bomba foi rapidamente reparada e, às 05h20 da manhã do meu terceiro e último dia, Jones acordou-me. Nas três horas seguintes, comecei a compreender por que motivo os gricers são gricers.

Vestido com um fato-macaco de caldeira, subi os dois metros de degraus de metal até à cabine da locomotiva, uma OL49-69 construída no início da década de 1950. Tem o chão de tábuas de madeira e as portas e janelas presas por arames. À minha frente, por cima do queimador, há uma confusão de alavancas, roldanas e mostradores. Atrás fica o vagão do carvão. Todas as superfícies estão oleosas, pretas e sujas. Há um cheiro forte a enxofre.

Howard mostra-me o regulador (uma alavanca de aço que serve como acelerador), o inversor (uma roda que determina a direção de deslocação) e uma alavanca para os travões. Depois arrancamos – 140 toneladas de aço a vibrar na escuridão por entre nuvens de vapor e fumo.


É emocionante, mas também assustador. Mal conseguimos ver os carris porque a longa caldeira da locomotiva está no caminho. Andrzej, um homem de 67 anos e com quarenta e oito de experiência nas ferrovias, confia quase por completo no seu conhecimento íntimo da linha para saber quando acelerar e parar. Poderia conduzir de olhos vendados.


Leszno fica a 45 quilómetros, ou oitenta e três minutos de distância. Pelo caminho, paramos em onze estações de aldeias. Normalmente haveria muitos estudantes e alunos à espera nas plataformas, mas estamos nas férias escolares e por isso hoje só apanhamos alguns passageiros. Estão alegremente alheados de que têm um principiante a ajudar na casa da máquina, a puxar alavancas e a rodar manípulos enquanto Andrzej dá instruções num inglês rudimentar.


Disseram-me para apitar quando nos aproximamos das passagens de nível. Lanço pedaços de carvão na fornalha ardente, enchendo a cabine com um brilho alaranjado e uma rajada de ar quente sempre que abrimos as suas portas de aço para expor a fornalha incandescente. Às vezes atingimos 60 quilómetros por hora e a locomotiva vibra, mas de alguma forma fazemos paragens precisas ao centímetro em cada estação. 


Ao aproximarmo-nos de Leszno, o ramal junta-se a uma dúzia de outros. Um sinalizador invisível guia-nos pelo emaranhado, e paramos num crescendo de ruído e fumo. Os comboios a diesel e elétricos deslizam para dentro e para fora quase em silêncio, mas as locomotivas a vapor são primadonnas – uma afirmação. Uma dúzia de passageiros desce, e escassos vinte minutos depois partimos de regresso a Wolsztyn. Desta vez, a locomotiva está na parte de trás. Estamos a ir em marcha-atrás. 



Passamos por fábricas, armazéns e casas modernas ao deixar Leszno. Trovejamos através de férteis terrenos agrícolas e depois por florestas de pinheiros e bétulas prateadas, espantando os veados. Apanhamos clientes a caminho do mercado de Wolsztyn e trabalhadores noturnos a caminho de casa, um total de trinta e oito passageiros. Estamos então a entrar na estação de Wolsztyn, depois de termos queimado duas toneladas de carvão. São 09h07. Eufórico, agradeço a Andrzej e Marcin, tiro o meu macacão de caldeira e corro para um carro que está à espera, com as mãos e o rosto pretos e sujos. Devo conseguir apanhar o avião. Howard diz-me: «Você é uma das cerca de 2000 pessoas que ajudaram a conduzir uma locomotiva a vapor numa linha principal neste século.» 




Marcin, o fogueiro, na cabina da locomotiva, entre a variedade de alavancas e manípulos com que se conduz o comboio.


Trabalhadores ferroviários em Wolsztyn tentam reparar a bomba de travão da locomotiva. 



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