EUROPEU DO ANO 2022

Europeu do Ano 2022

"Se parar agora, nada vai mudar"


Sviatlana Tsikhanouskaya, exilada da Bielorrússia, ousou lutar contra um ditador brutal. Em reconhecimento, é o Europeu do Ano das Selecções do Reader’s Digest para 2022.


Tim Hulse




Numa tórrida tarde de agosto de 2020, três figuras atravessam com passos determinados a Praça da Independência em Minsk, na Bielorrússia. Passam pela grande estátua de Vladimir Lenine e seguem para a Casa do Governo, um símbolo imponente da autoridade do Estado.



A partir daí o Presidente, Alexander Lukashenko, de 67 anos, ex-soldado e diretor de quintas estaduais, mantém o poder com punho de aço no país com perto de 10 milhões de habitantes. O seu regime foi considerado a última ditadura da Europa. Desde que chegou ao poder, em 1994, na primeira eleição presidencial da ex-República Soviética, tem reprimido protestos, levado os líderes da oposição ao exílio e imposto a censura. As Nações Unidas registam consistentemente violações dos direitos humanos. A Amnistia Internacional chamou «misógino» ao seu governo por ter as mulheres ativistas como alvo.


Em 2006 e 2010, o regime de Lukashenko enfrentou protestos na sequência de vitórias eleitorais contestadas, mas recentemente a oposição tornou-se muito mais vocal, em particular depois de ter declarado a pandemia da COVID-19 uma «psicose coletiva», recusando-se a implementar medidas para combater a sua propagação e recomendando, em vez disso, trabalho árduo, vodka e sauna. 

Depois chegou o verão de 2020. A 9 de agosto, quando as sondagens oficiais à boca das urnas deram 80% dos votos a Lukashenko – ele tinha «ganho» as últimas eleições do país –, dezenas de milhar de pessoas encheram as ruas por toda a Bielorrússia para protestarem contra a fraude nas eleições. Em Minsk, foram recebidas com polícia de choque e balas de borracha.


Foi no dia seguinte, 10 de agosto, que o trio chegou à Casa do Governo para protestar formalmente contra os resultados das eleições. A dirigi-los ia Sviatlana Tsikhanouskaya, então com 37 anos, cujo rosto se tornou familiar para a nação e o mundo graças à extraordinária sucessão de acontecimentos que a tornaram a principal rival de Lukashenko nas eleições. Ela acredita que é a verdadeira vencedora das eleições, tal como muitos dos seus compatriotas.


Acompanhavam-na o seu advogado, Maksim Znak, e Maria Kolesnikova, artista musical e ativista política que foi a sua companheira mais próxima durante a campanha. Para Sviatlana Tsikhanouskaya, mãe e dona de casa atirada para a cena pública depois da prisão do marido, Sergei Tikhanovsky, que era suposto ser o candidato, as últimas semanas pareceram-lhe um sonho estranho. Mas as poucas horas que se seguiram iriam ser o começo de um pesadelo.


O papel de estadista internacional não era nada que a jovem Sviatlana Pilipchuk tivesse em mente enquanto crescia em Mikashevichy, uma pequena cidade no sul da Bielorrússia. O pai era camionista e a mãe cozinheira num café. A família não era rica, mas a sua infância foi cheia de amor e respeito.


Foi a avó, em particular, quem transmitiu os seus valores a Sviatlana. «A minha avó dizia que as pessoas à nossa volta são mais importantes do que nós, que se pessoas ficam em nossa casa devem ter o melhor lugar para dormir e a melhor comida.»


Na era soviética, o dinheiro era pouco e a comida racionada, mas as pessoas não se queixavam porque podiam acabar presas. «Nesse sentido», reflete amargamente, «nada mudou».


Quando Sviatlana tinha 14 anos, uma associação solidária criada uma década antes, depois do desastre de Chernobyl – a fronteira da Ucrânia fica a 60 quilómetros de Mikashevichy –, permitia às crianças direta ou indiretamente afetadas passarem uma temporada com famílias na Irlanda. Deste modo, Sviatlana deu consigo nesse verão em County Tipperary, em casa de um casal irlandês.


Impressionou-a o facto de as pessoas ali parecerem felizes em comparação com as do seu país. «Era uma novidade para mim as pessoas sorrirem umas para as outras e dizerem “obrigado” nas lojas.»


Alguns anos mais tarde, quando estudava inglês e alemão na universidade, Sviatlana conheceu um homem grande como um urso chamado Sergei Tikhanovsky. Casaram em 2005 e, quando Sviatlana terminou os estudos, mudaram-se para a terra natal de Sergei em Gomel, onde ele fundou uma empresa de produção de vídeo para filmar publicidade. Como o primeiro filho nasceu praticamente surdo, a jovem família mudou-se para Minsk para que tivesse o melhor acompanhamento médico.


Sviatlana e o marido consideravam-se apolíticos. Mas quando Sergei comprou uma casa numa quinta aban - danada para renovar, deparou com a burocracia do governo para obter as licenças necessárias. Frustrado, lançou um canal no YouTube onde falava das dificuldades diárias dos bielorrussos comuns.

«Ele contava as histórias que ouviu de pessoas que conhecia ao andar de cidade em cidade, pessoas que tinham fome», explica Sviatlana. «Ou não tinham

emprego ou os salários eram demasiado baixos.» Sergei deu-lhes a possibilidade de se fazerem ouvir.


No espaço de um ano, o canal contava 140 mil subscritores. Sviatlana começou a recear que o marido corresse perigo. Na verdade, em maio de 2020 Sergei foi preso por «participar numa ação de protesto não autorizada». Enquanto estava na prisão, apareceu um vídeo pré-gravado no seu canal no YouTube em que dizia: «Quero mudar as coisas no meu país. As pessoas merecem um futuro

melhor, por isso decidi candidatar-me à presidência.» Falou abertamente da «ditadura» no país, dizendo que nos últimos vinte anos as eleições tinham sido viciadas.


Ao ver o anúncio em casa, Sviatlana ficou em choque - nunca tinham falado naquilo. Mas ela sabia que era a coisa certa para a Bielorrússia. «As pessoas estavam a acordar para o facto de não serem as únicas que não concordavam

com o regime e as suas condições de vida. Tinham sentido que não podiam fazer nada quanto a isso, mas as mentes das pessoas estavam a mudar.»


Alguns dias depois da prisão, Sviatlana levou os impressos da candidatura de Sergei à Comissão Central de Eleições, mas foi rejeitada. Os funcionários tentaram fazer da sua tentativa uma piada. Em casa nessa noite, zangada,

com o prazo do registo a chegar ao fim, perguntou a si mesma: E se eu o puder fazer pelo meu marido?


Sabendo como Sergei estava empenhado em dizer a verdade sobre a Bielorrússia, e querendo demonstrar o seu amor mostrando que aquilo em que ele acreditava também era importante para ela, Sviatlana decidiu concorrer às eleições no seu lugar. Nos documentos, colocou o seu próprio nome.


No entanto, para se registar precisava de recolher 100 mil assinaturas. Quando Sergei foi libertado, atirou-se à tarefa deixando Sviatlana permanecer em casa, nos bastidores. Mas uma semana mais tarde ela voltou a ser forçada a agir porque Sergei foi preso de novo. «Era difícil ser como um inseto que enfrentava a enorme máquina do regime», confessa. Contudo, também viu milhares de pessoas a apoiá-la.


Sviatlana recolheu as 100 mil assinaturas e, para surpresa sua, a Comissão Central de Eleições permitiu-lhe que se registasse. Parecia que Lukashenko não estava preocupado com ela. Já tinha expressado a ideia de que o peso da presidência faria uma mulher «colapsar, coitadinha».


Os dois principais candidatos da oposição, ambos homens – Valery Tsepkalo e Viktar Babaryka –, viram as suas candidaturas negadas. Depois Tsepkalo fugiu para Moscovo, temendo a prisão, e Babaryka foi preso, acusado de corrupção. 


Foi então que Sviatlana recebeu uma chamada a sugerir uma reunião com a chefe de campanha de Babaryka, Maria Kolesnikova, e a mulher de Tsepkalo, Veronika. As mulheres concordaram unir-se em torno dos princípios de eleições justas e libertação dos presos políticos. Com esta aliança, Sviatlana deu consigo na liderança de uma campanha forte.


Na conferência de imprensa o trio posou para as fotografias. Espontaneamente, Sviatlana ergueu um punho cerrado, um gesto que o marido tinha adotado. Kolesnikova fez um coração, o símbolo da campanha de Babaryka, e Veronika um V de vitória. Estes símbolos tornar-se-iam uma imagem icónica, replicada em bandeiras e cartazes.


Ao princípio era uma provação para Sviatlana fazer discursos à frente de multidões, mas recorreu à determinação de que precisou para ajudar o filho a aprender a falar depois da operação. «Tive de trabalhar com ele todos os minutos», explica. «Isso exercitou-me a vontade.»


A 9 de agosto, dia das eleições, a Internet foi bloqueada. Da sua sede de campanha, Sviatlana ouviu explosões. Chegaram notícias de que a polícia estava a agredir as pessoas nas mesas de voto.


Na Casa do Governo, no dia seguinte, apenas Sviatlana e Znak, o seu advogado, foram autorizados a entrar no gabinete da Comissão de Eleições para entregar 

o protesto formal. À sua espera estavam dois homens de meia-idade com fatos formais, que Sviatlana descobriu mais tarde serem membros seniores das forças de segurança.


Os homens pediram para ver as credenciais de Znak e, quando ele saiu da sala para as ir buscar, trancaram a porta. Chocada e amedrontada, Sviatlana enterrou-se num sofá. Um homem sentou-se do lado oposto da sala. Não disse muito. Apenas a fitava. O que permaneceu de pé em frente dela é que falou.


«Você não passava de uma dona de casa que não sabia o que fazia», começou o homem, alegando que tinha sido usada para instigar um golpe. Também lhe disse que os polícias foram feridos pelos manifestantes e Sviatlana iria ser considerada responsável e presa.


O massacre psicológico iria durar três horas. O objetivo? Fazê-la deixar a Bielorrússia. No entanto, Sviatlana manteve-se firme. «Centenas de milhar de pessoas apoiaram a minha campanha», afirmou. «Não as posso trair.»


Então, o homem mostrou-se mais ameaçador: «Sabemos que os seus filhos estão na Lituânia.» Era verdade. Ela enviou o filho e a filha para casa de amigos depois de terem recebido um telefonema ameaçador. Se ela fosse para a cadeia, continuou o homem, não iria poder ver os filhos a crescer.



A escolha era clara. Por fim, ela disse: «Se eu tiver de partir, quero o meu marido comigo.»


«Impossível», respondeu o homem.


«Está bem, nesse caso preciso de Maria Moroz», retorquiu Sviatlana. «Não vou sem ela.» Moroz, a gestora de campanha de Sviatlana, havia sido detida dois dias antes e também tinha filhos em quem pensar.


Os homens concordaram, na condição de que gravasse um vídeo a pedir aos bielorrussos que parassem de se manifestar. No papel que lhe deram para ler à frente da câmara também se lia que Lukashenko tinha ganho as eleições. «Não vou dizer isso», retorquiu num tom desafiante. Leu o resto, segurando o papel à sua frente para mostrar aos espectadores que estava a ser coagida. O cansaço e a tensão eram visíveis no seu rosto.


Ainda nessa noite, Sviatlana e Maria foram levadas de carro até à fronteira com a Lituânia para deixarem o país que amavam. Quando passaram por manifestantes nas ruas, as mulheres tiveram vontade de se juntar a eles.


As manifestações continuaram durante semanas, e as autoridades responderam com brutalidade. Vários manifestantes foram mortos e houve cerca de 35 mil detidos, de acordo com Anais Marin, perita independente designada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. «As autoridades bielorrussas lançaram um assalto em larga escala contra a sociedade civil, cerceando um vasto espectro de direitos e liberdades.» Maksim Znak e Maria Kolesnikova, que foram detidos quando Sviatlana foi deportada, ainda estão na prisão.


Lukashenko, entretanto, agradeceu à polícia. «Tiraram o lixo das limpas e confortáveis ruas de Minsk.»


Pouco depois de ter chegado à Lituânia, Sviatlana gravou outro vídeo. 


Acerca da sua decisão de partir, disse: «Muitas pessoas irão mostrar compreensão, bastantes serão amargamente críticas e muitas irão começar a detestar-me. Deus lhes permita que nunca tenham de enfrentar a escolha que tive de fazer.» Depois, pôs mãos à obra.


Sviatlana, agora com 39 anos, publicita incansavelmente a situação na Bielorrússia, tentando influenciar outros países a apoiarem uma nova eleição justa e a libertação dos presos políticos. Durante quase dois anos no exílio reuniu-se com líderes mundiais, incluindo Joe Biden, Boris Johnson, Emmanuel Macron e Angela Merkel. A União Europeia, os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá impuseram sanções ao regime de Lukashenko.


A Lituânia reconhece Sviatlana Tsikhanouskaya como sendo a líder «legalmente eleita da Bielorrússia». 


Num edifício preto brilhante em Vilnius, ela dirige uma equipa de 40 pessoas que, tal como ela, não têm vencimento (recebem dinheiro para a renda da casa e alimentos sobretudo de fundações solidárias). A segurança aqui é apertada. 


O regime de Lukashenko mostrou ter um longo alcance no silenciamento de dissidentes. Em maio de 2021, um voo de Atenas para Vilnius onde seguia um jornalista dissidente e a namorada foi desviado para Minsk pelo controlo de tráfego aéreo bielorrusso com um falso pretexto. Ambos foram detidos ao aterrar. Sviatlana é acompanhada de segurança onde quer que vá. 


«Eu sei que sou um alvo», afirma às Selecções do Reader’s Digest, «e para o regime seria mais fácil se eu desaparecesse». Elegante, com um vestido preto, e sentada numa sala de reuniões, a sua voz é suave e o tom determinado. Diz que está mais preocupada com quem continua na Bielorrússia. «Todos os bielorrussos estão em perigo até nos livrarmos do grupo criminoso que tomou conta do poder.» 


Quando Sviatlana se encontrou com o Presidente Biden em julho de 2021, sabia que era uma mensagem para o regime de Lukashenko e o mundo. Disse a Biden que queria ajudar a travar a violência no seu país e a construir uma Bielorrússia livre e democrática. Biden assegurou-lhe que o país dele está ao lado dela. 


Sviatlana diz-se inspirada pelos líderes mundiais que ajudam o seu país e também pelo marido, que, em dezembro de 2021, depois de um julgamento que foi considerado uma farsa, foi sentenciado a dezoito anos de prisão. Ela diz que a sentença é a «vingança pessoal» de Lukashenko. 


Sergei está sempre na mente de Sviatlana. Quando escrevemos este artigo, ela só tinha falado com ele uma vez desde que havia sido preso em 2020. Mas fala das pessoas da Bielorrússia que fizeram sacrifícios em nome da mudança. 


«As pessoas tornaram-se destemidas», afirma Sviatlana. «Temos de ser todos juntos.» Ela sonha com uma Bielorrússia onde o povo possa viver com felicidade, «onde as pessoas não são mortas ou aprisionadas por aquilo em que acreditam. Onde a opinião dos cidadãos é levada em conta». 


Segundo Bruce Millar, da Amnistia Internacional: «A comunidade internacional deve fazer tudo o que pode para pressionar o governo de Alexander Lukashenko a acabar com a repressão bárbara sobre a sociedade civil e a dissensão na Bielorrússia.» 


É para fazer esta pressão que Sviatlana trabalha. «Muitas vezes fico exausta e penso que não consigo fazer mais isto, em particular quando ouço que mais pessoas foram detidas», confidencia. «Mas se parar agora, nada vai mudar. Sinto uma grande responsabilidade. As pessoas acreditam em mim. Não as posso desiludir.» 

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