VIDAS FLUTUANTES

VIDAS FLUTUANTES 



Um bairro único nos Países Baixos mostra como as cidades se podem preparar para a subida dos níveis da água do mar. 



Shira Rubin 

DE TheWashington Post

Fotografias por Ilvy Njiokiktjien 




Marjan de Blok tenta equilibrar-se enquanto caminha ao longo do passadiço que liga uma comunidade flutuante num canal junto ao rio Ij. Por entre o vento cortante, grita saudações para muitos dos seus vizinhos.

No dia em que a fui visitar, no outono de 2021, chuvas torrenciais e ventos de 80 quilómetros por hora colocaram Amsterdão, a uma pequena viagem de ferry de distância, em alerta. Mas no bairro nortenho de Schoonschip, a vida continuou normal. Marjan visitou os vizinhos enquanto as suas casas subiam e desciam nos postes que lhes servem de alicerce, ao sabor do movimento das águas lá em baixo.

«Parece que vivemos na praia, com a água, o ar salgado e as gaivotas», diz. «Mas também parece especial porque, de início, disseram-nos que construir o nosso próprio bairro era impossível.»

Uma longa lista de legisladores europeus, urbanistas, empreendedores e cidadãos comuns visitaram Schoonschip para ver a versão real de uma ideia que parecia saída da ficção científica. De Blok, realizadora de televisão nos Países Baixos, mostrou-lhes a panóplia de projetos sociais focados no ambiente de Schoonschip: luxuriantes jardins flutuantes que as aves marinhas adoram, um centro comunitário com diagramas de arquitetura flutuante e uma horta de vegetais em terra firme, ali perto. Mas o design industrial-chique das casas e a sua proximidade à cidade são o que mais surpreende os visitantes.

Schoonschip pode servir de protótipo para os mais de 600 milhões de pessoas – perto de 10% da população mundial – que vivem perto da costa e a menos de 10 metros acima do nível do mar. Com a intensificação dos efeitos das alterações climáticas, espera-se que o nível do mar suba entre os 30 e os 240 centímetros ainda este século, e espera-se que as tempestades aumentem em frequência e intensidade. No verão de 2021, pelo menos 220 pessoas morreram na Alemanha e na Bélgica devido a uma pluviosidade que apenas se verificava a cada quatrocentos anos. Em Zhengzhou, na Cinha, caíram 630 milímetros de chuva num só dia, matando perto de 300 pessoas.

De acordo com um estudo publicado o ano passado por uma equipa da Universidade de Friburgo, no final deste século os eventos de precipitação que, por norma, ocorrem duas vezes por século, irão verificar-se com o dobro da frequência, e os mais extremos, que ocorrem a cada duzentos anos, serão quatro vezes mais frequentes. 

Os Países Baixos há muito que se confrontam com a água – perto de um terço do país está abaixo do nível das águas do mar e perto de dois terços tem tendência a inundar. Desde a Idade Média, as coletividades neerlandesas drenaram as águas para arranjarem espaço para os terrenos de cultivo. Os grupos evoluíram para assembleias regionais da água que mantêm a terra seca com o uso de canais, diques, barragens e comportas marítimas. A gestão da água é uma parte tão normal da experiência neerlandesa que muitos cidadãos ficam surpreendidos quando lhes perguntam sobre isso, assumindo que é comum em todos os países.

Historicamente, os Neerlandeses sempre viveram acima da água. Com o florescimento do comércio internacional no século xvii, os comerciantes estrangeiros ancoravam os barcos junto a terra para venderem os seus bens. Na década de 1970, as pessoas começaram a converter os barcos em casas.

E ao longo da última década os estrategas neerlandeses da gestão da água começaram a acolher, em vez de resistirem, o aumento do nível do mar provocado pelas mudanças climáticas, e comunidades flutuantes emergiram em Amsterdão, Roterdão e Utrecht.

Estas casas têm uma tecnologia relativamente simples, são construídas noutro local e lastradas com bacias preenchidas com betão reciclado à prova de água, e depois puxadas pela água por rebocadores e ancoradas nos respetivos lugares. Peças pesadas como pianos são contrabalançadas com tijolos no lado oposto da casa, e o design de interiores obedece ao princípio neerlandês do gezelligheid, ou «aconchego». Muitas divisões são equipadas com mobília modular que pode ser facilmente desmontada ou reconfigurada para acomodar as mudanças da vida, como o nascimento de uma criança.

«É evidente que as águas do mar vão subir, e que muitas das grandes cidades estão muito perto dessas águas», diz o residente de Schoonschip, Sascha Glasl, cuja empresa de arquitetura, Space & Matter, desenhou várias das casas da comunidade.

Marjan, que não tem formação em engenharia, arquitetura ou hidrologia, diz que nunca pensou em ser pioneira de um movimento de desenvolvimento flutuante. Em 2009, começou a ficar desencantada com a sua vida em Amsterdão. Estava a sempre a trabalhar, comprava coisas que raramente usava e tinha pouco tempo para os amigos.

Num dia frio de inverno, visitou um local de eventos flutuante com painéis solares, chamado GeWoonboot, para uma série de pequenos documentários que estava a filmar sobre modos de vida sustentáveis. Ficou espantada com a atmosfera contemporânea, a sua proximidade da água e da cidade, e o seu uso para práticas sustentáveis experimentais.

«Antes de visitar aquele barco, não tinha verdadeira consciência de que não gostava da maneira como vivia», diz.

Quando perguntou a amigos se tinham interesse em construir uma comunidade flutuante, não estava preparada para o dilúvio de respostas. Teve de encerrar a lista nas 120 pessoas.

Procurou águas nas imediações de Buiksloterham, uma zona pós-industrial de 100 hectares que tinha sido em grande parte abandonada quando os fabricantes – incluindo a Shell e a fábrica de aviões Fokker – deixaram a cidade e se mudaram para países com salários mais baixos na segunda metade do século xx. Quando soube que a cidade estava a planear construir naquela zona dezenas de milhares de fogos, percebeu que podiam ser os pioneiros naquele local.

Em Buiksloterham, a torre de 22 andares da Shell foi reconvertida na Torre de Dança e Música de Amsterdão, com discotecas, um restaurante giratório e um terraço de observação. O relvado Overhoeks Promenade, que serviu como patíbulo do século xv ao xvii, alberga agora o massivo e modernista Eye Filme Museum. A doca NDSM é salpicada por coletividades artísticas, lojas vintage e um hotel de luxo.

Quando «Schoonschip» se transforma num verbo, «fazer schoonschip» significa «limpar». Procurando que a comunidade fosse diferente, Marjan de Blok fez todos os residentes assinarem um manifesto no qual se comprometiam a construir, isolar e dar o acabamento às suas casas com materiais ecológicos, como palha, serapilheira e bambu. Também acordaram informalmente comerem juntos, nadarem juntos e viverem em grande medida à vista uns dos outros, correndo as cortinas muito raramente. Usam um vibrante grupo de WhatsApp para pedir qualquer tipo de serviço ou algo emprestado a um vizinho, incluindo bicicletas e carros.

A vizinhança parece uma grande festa de quarteirão, sobretudo porque muitos dos residentes são de facto amigos de Marjan de Blok, ou amigos de amigos, incluindo colegas da indústria da televisão e do entretenimento. A maioria juntou-se ao projeto quando tinha 20 a 30 anos, ainda não tinham filhos e dispunham de muito tempo para investir na construção da comunidade. Doze anos depois, estes jovens casais têm jovens famílias.

Durante os meses de verão, as crianças saltam das janelas dos quartos diretamente para a água lá em baixo. Nas noites limpas de inverno, o bairro brilha com luzes suaves e ouve-se o murmúrio dos residentes a conversarem nos alpendres dos andares de cima. «Assim que escurece e as luzes das casas estão acesas, parece o set de um filme.»

De modo a atingir as metas sustentáveis de Schoonschip, Marjan contou com o apoio dos próprios residentes. Siti Boelen, um produtor de televisão neerlandês, serviu de intermediário entre o comité de representantes de Schoonschip e o município local. Glasl, o arquiteto, ajudou a desenhar o pontão que liga as casas umas às outras e a terra. 

Eelke Kingma, residente e especialista em tecnologias renováveis, juntou-se a um grupo de trabalho da comunidade que desenhou o sistema inteligente da rede de energia do bairro. Os residentes recolhem energia de mais de 500 painéis solares – colocados em aproximadamente um terço dos telhados da comunidade – e de quatro bombas de calor eficientes que se alimentam da água em baixo. Depois armazenam-na em enormes baterias debaixo das casas e vendem o que sobra uns aos outros, bem como à rede nacional.

Um programa IA-automatizado em desenvolvimento irá usar os leitores inteligentes das casas para informar os residentes quando podem ganhar mais com a venda da eletricidade com base nas flutuações dos preços do mercado de energia. Schoonschip irá ser o primeiro bairro residencial no país a lucrar com a geração de energia, diz Kingma.

O programa está a ser monitorizado em colaboração com 15 empresas, universidades e instituições europeias, organizadas pela Comissão Europeia, que apoia experiências de energia renovável na esperança de as fazer crescer em escala por todo o continente.

Ao longo da última década, o movimento das casas flutuantes tem ganhado impulso nos Países Baixos. O governo neerlandês está a rever a legislação para redefinir as casas flutuantes como «imóveis» em vez de «barcos», de modo a simplificar o processo de obtenção de licenças. 

Amsterdão e Roterdão registam um aumento acentuado de pedidos de licenças para construir sobre a água. A tendência está a coincidir com uma campanha nacional de consciência da água para uma era em que as mudanças climáticas já fazem parte da vida. O governo lançou uma aplicação, chamada Overstroom ik? (ou «Vou inundar?»), que permite aos residentes verificarem se a sua zona está em risco de inundação. E o programa «Espaço para o Rio» promoveu mais de 30 projetos de gestão de águas de nível elevado em distritos com tendência a inundar ao longo dos últimos quinze anos. 

As pessoas por detrás de Schoonschip e outros bairros, escritórios e espaços de eventos flutuantes nos Países Baixos estão a ser cada vez mais consultadas para projetos em todo o mundo. 

Em 2013, a empresa de arquitetura Waterstudio, que desenhou várias casas em Schoonschip, enviou um contentor de carga convertido flutuante, ligado à Internet, chamado City App, para o bairro pobre de Korail Bosti em Daka, no Bangladesh. As crianças assistiam aí a aulas à distância durante o dia, e os adultos usavam-no para desenvolver negócios à noite. Em 2019 a embarcação foi relocalizada para um bairro pobre perto de Alexandria, no Egito, onde se mantém estacionada. 

«Queremos melhorar as cidades perto da água», diz Koen Olthuis. «Agora estamos num ponto de viragem e isso está realmente a acontecer. Estamos a ter pedidos de todo o mundo.» 

Passadas duas décadas de planeamento, a sua empresa, juntamente com a Dutch Docklands, que se especializa em construções flutuantes, irá supervisionar a construção numa enseada de 200 hectares ao largo de Malé, a capital das Maldivas. A cidade está a menos de um metro acima do nível do mar, o que a torna vulnerável à subida das águas. O pequeno complexo, com um design simples, irá albergar 20 mil pessoas. As bombas irão retirar energia das águas do mar profundas e os cascos das casas forrados a coral artificial irão promover a vida marinha. 

«Os projetos neerlandeses e internacionais estão a mostrar que podemos lidar com os desafios da subida dos níveis do mar», diz Olthuis. 

Em Schoonschip, Marjan espera que um dia todos sejam capazes de viver em comunidades construídas em harmonia com o ambiente natural. «Viver em cima da água faz-nos estar conscientes de que debaixo da nossa casa tudo se mexe», diz. «Isso tem uma certa magia.» 



THE WASHINGTON POST (17 DE DEZEMBRO DE 2021), COPYRIGHT © 2021 POR THE WASHINGTON POST 











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