10 Anos de Papa Francisco

10 ANOS DE PAPA FRANCISCO


Este mês cumpre-se uma década desde que Jorge Mario Bergoglio, da Argentina, se tornou líder da Igreja Católica. Quais as suas conquistas – e fracassos – até agora? 


Alex Cyr 




Em 2013, quando Bento XVI se tornou o primeiro Papa em quase seiscentos anos a renunciar ao cargo de Sumo Pontífice da Igreja Católica, o Colégio Cardinalício enfrentou um problema difícil: precisava de eleger um novo líder que pudesse não apenas defender a imagem da Igreja, que tem 1,3 mil milhões de crentes em todo o mundo, mas também restaurá-la e melhorá-la. A confiança das pessoas na Igreja tinha-se erodido, em especial na América do Norte e na Europa, devido aos escândalos de abusos sexuais e de corrupção que, por todo o mundo, vieram a público desde a década de 1950.

O Colégio Cardinalício entregou a Cadeira de Pedro a Jorge Mario Bergoglio, de Buenos Aires, tornando o argentino o primeiro Papa não europeu desde Gregório III, da Síria, que governou os destinos da Igreja cerca de 1300 anos antes. O cardeal Bergoglio adotou o nome de Papa Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, frade católico e padroeiro de Itália, conhecido pela proteção das causas dos animais e da ecologia.

O mais velho de cinco filhos de um contabilista e de uma dona de casa, Bergoglio estudou química e trabalhou como porteiro, segurança e professor antes de ser ordenado sacerdote em 1969, aos 32 anos.

Foi-lhe dado o epíteto de «Papa Progressista» devido às suas homilias não ensaiadas, ao envolvimento com questões sociais e à vontade de desafiar a doutrina tradicional da Igreja. Ao recusar-se a andar num carro à prova de bala (o «Papamóvel») e abrir mão do confortável Palácio Apostólico para dormir na casa de hóspedes de Santa Marta, desafia o preconceito de que liderar um dos maiores grupos religiosos do mundo significa alhear-se da realidade quotidiana dos fiéis.


Mas, dez anos depois, este Papa ajudou a Igreja a começar a recuperar a sua posição enquanto instituição de Santidade e Fé? Austen Ivereigh, jornalista e investigador de história contemporânea da Igreja na Universidade de Oxford e autor de duas biografias sobre o Papa Francisco, acredita que sim.


«Fez uma enorme diferença na maneira como a Igreja e o Papado são percecionados pelos crentes como tendo uma nova credibilidade», diz. «Os crentes já não veem a instituição como severa e autoritária.»

Talvez o maior ato do Papa Francisco, de acordo com este investigador, tenha sido a reforma do Sínodo dos Bispos, uma assembleia de líderes destinada a identificar as áreas em que a Igreja pode melhorar. As consultas decorriam há muito no Vaticano e ganharam a reputação de implementar poucas ou nenhumas mudanças.


No entanto, em outubro de 2021, no que Austen Ivereigh declara ter sido «provavelmente a maior consulta feita na história da Humanidade», a Igreja chamou publicamente os fiéis e realizou consultas públicas: milhões de pessoas reuniram-se em paróquias e dioceses em todo o mundo para partilhar pontos de vista e expressar preocupações.

Os pontos em discussão nestas reuniões inovadoras vão ser resumidos em relatórios nacionais e continentais e depois serão apresentados no Sínodo dos Bispos que terá lugar entre outubro de 2023 e outubro de 2024.

Alguns dos mais positivos incluem:

■ Uma maior oposição à extrema-direita. A diplomacia do Vaticano afastou a Igreja Católica dos políticos autoritários ainda mais do que os seus predecessores. O Papa Francisco tem sido um opositor vocal do nacionalismo e do populismo, divorciando a Igreja de movimentos políticos como a extrema-direita norte-americana, diz Austen Ivereigh.

■ Fortalecimento dos laços com o islão. O seu trabalho missionário, em especial a visita a Marrocos em 2019 para conversar com imãs, ajudou a Igreja a estreitar os laços com o mundo muçulmano.


■ Recuperação de relações internacionais. O Papa Francisco teve um papel fundamental na melhoria das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos ao sediar encontros entre Barack Obama e Raul Castro em 2015. Foi a primeira vez em cinquenta anos que os chefes de Estado dos dois países se encontraram.


■ Intervenção na guerra russa. Em setembro de 2022, o Papa ajudou a intermediar uma troca de prisioneiros que resultou na libertação de mais de 200 ucranianos detidos em solo russo.


■ Tentativa de enfrentar a crise climática. O Papa fez da proteção do meio 

ambiente uma prioridade do seu pontificado, escrevendo a encíclica Laudato Si que convoca os fiéis a cuidarem «da nossa casa comum».

■ Pedido de perdão por erros do passado. Em julho de 2022, o Papa Francisco foi ao Canadá para se desculpar do «mal deplorável» dos servidores da Igreja que trabalhavam nas escolas canadianas. Alguns líderes da comunidade de nativos canadianos consideraram que se tratou do primeiro passo para a reconciliação. Outros disseram que não foi longe o suficiente para assumir as responsabilidades por erros institucionais que duraram gerações. 


Para muitos, as reformas de Francisco foram poucas e lentas. Embora tenha defendido a aceitação da comunidade LGBTQ+ como membros da sua Igreja, manteve a oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e ao aborto. Os católicos progressistas também desejavam ver algumas regras afrouxadas – por exemplo, o celibato dos padres –, mas nada mudou nesse domínio.

«O Papa Francisco tem sido progressista até certo ponto», diz Massimo Faggioli, professor de Teologia e Estudos Religiosos na Universidade de Villanova e autor do livro Pope Francis: Tradition in Transition (numa tradução literal «Papa Francisco: Tradição em Transição»). «Mas ele mal abordou formalmente a questão da ordenação sacerdotal de mulheres na Igreja e não adotou muitas medidas para resolver a questão.»

Este especialista diz que o Papa é considerado progressista por comparação com os seus antecessores ainda mais conservadores. 


Outros questionam o facto de o Sumo Sacerdote manter relações com o cardeal Maradiaga, conselheiro-chefe acusado de má gestão financeira em 2017, e a nomeação, em 2015, e subsequente defesa, em 2017, do bispo chileno Juan Barros, acusado de, na década de 1980, ter fechado os olhos a abusos sexuais. Mais tarde, o Papa viria a admitir «graves erros de julgamento» e denunciou a «cultura de encobrimento» presente na liderança da Igreja no Chile, garantindo a renúncia dos seus bispos, incluindo Barros.

Apesar de tudo, a Igreja Católica tem 1,3 mil milhões de fiéis – o número aumentou 100 milhões durante o pontificado de Francisco –, em boa medida impulsionados pela popularização da fé católica em África e na Ásia.


O Papa Francisco tem agora 86 anos e surgem rumores de que deverá renunciar. (Lembremo-nos que, dois anos depois de ter sido escolhido, previu para si um pontificado curto.) De acordo com Austin Ivereigh, no ano passado avolumaram-se os prognósticos de renúncia quando uma rotura dos ligamentos do joelho o confinou a uma cadeira de rodas durante a primavera e o verão. Mas desde então a sua saúde tem vindo a melhorar.

«Não considero que a renúncia esteja iminente», avança o especialista.

No entanto, os rumores conduzem a especulações sobre o legado de Francisco e se fez, ou não, a diferença. Um dogma muito antigo da Igreja garante que o Espírito Santo dá sempre ao mundo o Papa adequado a cada momento. «De várias maneiras, Francisco provou que é o Papa de que o mundo precisava», diz Austin Ivereigh.

Todos podemos retirar as nossas conclusões.





Uma Conversa com o Papa Francisco


DO PODCAST Marcó, tu semana



«TIVE O PRIVILÉGIO DE TER uma relação com o Papa há muitos anos», diz Guillermo Marcó, padre em Buenos Aires e porta-voz do Sumo Pontífice quando ele era arcebispo. Os dois sentaram-se na residência de Francisco em junho do ano passado e falaram de tudo, desde a forma como o Papa reza até à ideia de envelhecimento.


«Depois de conversarmos, as pessoas perguntavam-me: “Ele está diferente agora?” A minha resposta é não. Achei-o muito feliz. Sempre foi brincalhão e ainda se ri muito.»


GUILLERMO MARCÓ: Durante muitos anos foi padre e bispo em Buenos Aires, evangelizava na rua, andava de transportes públicos. Agora, como Papa, tudo o que diz e faz tem repercussões no mundo. Como se sente com isso?


PapaFrancisco: Podemos medir a distância em metros ou em quilómetros. Mas no coração o tempo e a distância são a mesma coisa. Estão longe e ao mesmo tempo perto, não é? Às vezes, lembro-me de um episódio com alguém em concreto em Buenos Aires e, quando aparece alguma coisa semelhante aqui, sinto que é como se vivesse em todos os lugares.


GuillermoMarcó: O que é que um Papa inclui nas suas orações? São diferentes do que eram dantes?


PapaFrancisco: Em termos evangélicos, a oração do bispo é o cuidar do rebanho. E, bom, o Papa é um bispo, por isso aplica-se a mesma regra: observo, peço, intercedo e agradeço todo o bem que é feito.


GuillermoMarcó: Ainda se levanta cedo para as suas orações?


PapaFrancisco: Sim, sim! Porque se não se rezar pela manhã, não se consegue rezar mais – é muito complicado encontrar um tempo de silêncio.


Guillermo Marcó: Uma vez visitei Catamarca [uma província argentina] onde encontrei uma freira que era eremita. Perguntei-lhe qual a melhor forma de rezar e ela respondeu-me: «Olhe, eu levanto-me muito cedo, antes de amanhecer, porque depois, quando começam os passarinhos, distraio-me.» [Ambos riem.] Sente falta de algo da sua vida mais livre?

Papa Francisco: Sim, de vaguear por aí. Em Buenos Aires, ou caminhava ou andava de autocarro. Aqui, das poucas vezes que saí sozinho do Vaticano fui apanhado em flagrante. Quando fui ao oftalmologista eram sete da tarde, no inverno. Estava escuro. E, ainda no caminho, uma senhora gritou de uma varanda «É o Papa!» e pronto, acabou-se! [Ambos riem.] Da outra vez, abençoei uma loja de discos que uns amigos reconstruíram. Pediram-me para ir e fui. Mais uma vez, estava escuro. Mas tive azar porque, quando saí da loja, estava um jornalista* numa paragem de táxi que me reconheceu.


Guillermo Marcó: Há um mito popular segundo o qual muitas vezes sai do Vaticano para passear pelas ruas.


Papa Francisco: Isso não é verdade. O único que o conseguia fazer era São João Paulo II, que adorava esquiar. Há uma estância de esqui a menos de 100 quilómetros daqui. Ele usava um chapéu que lhe cobria o rosto e ninguém o reconhecia. No dia a seguir a ter sido eleito Papa, tive de tomar posse do Palácio Apostólico. É incrível o quanto é espaçoso. Não é assim tão luxuoso, mas é enorme: são cerca de 100 pessoas a trabalhar lá dentro. Perde-se a independência. Então, pedi ao Senhor: «Arranja-me uma solução.» No dia seguinte, passei por uma porta aberta e vi umas senhoras a fazer a limpeza. Perguntei: «Que lugar é este?» Responderam-me: «É a Casa de Hóspedes de Santa Marta. Estamos a limpar para o caso de alguém aparecer para a sua tomada de posse.» Olhei em volta e pensei: «E que tal este sítio? Tem o quarto, a casa de banho, o escritório.» E concluí: «É como uma batata-doce para um papagaio!» [Ambos riem com a expressão sul-americana que se traduz como «é como um doce para uma criança».] E foi assim. Deus pôs-me a solução à frente do nariz. Uma vez, numa entrevista, quando me perguntaram porque não fiquei no Palácio Apostólico, respondi: «Por razões psiquiátricas.» Não teria aguentado.


Guillermo Marcó: Gosta mesmo de estar entre as pessoas, não é? Almoça aqui com os funcionários todos os domingos.

Papa Francisco: Sim, é verdade. Eles almoçam às 12h20 e eu junto-me a eles. É uma maneira de ter um almoço em família diferente do que tenho todos os dias com padres, bispos, etc.


Guillermo Marcó: O que está agora a ler?


Papa Francisco: Estou a ler um livro sobre a última entrevista que o cardeal Martini deu [antes de morrer em 2012], na qual diz que a Igreja está duzentos anos atrasada no tempo.** É excelente. E está a ajudar-me. Tudo o que lemos amplia a nossa visão do mundo, certo?


Guillermo Marcó: A partir dessa leitura e da sua experiência enquanto Papa, o que vislumbra para a Igreja?


Papa Francisco: Que com o Espírito Santo não há necessidade de ter medo de nada. O egoísmo procura transformar uma crise num conflito, o que nos prejudica a todos, as crises são o que nos faz crescer. Uma das coisas que aprendi aqui é que não sabemos lidar com as crises. Quando transformamos uma crise num conflito, perdemos. O conflito diminui-nos. A unidade é maior que o conflito.


Guillermo Marcó: O que sente sobre o envelhecimento, a passagem do tempo?


Papa Francisco: Olhe, eu não me sinto venho. Ou sinto, de vez em quando, quando me lembro da idade que tenho. Parece irreal. Penso: «Eu? Com esta idade?» Depois rio-me e sigo adiante.


Guillermo Marcó: Sempre disse que os idosos são descartados. 


Papa Francisco: Esta é uma sociedade do descartável, não é? O que não funciona, deita-se fora. O que tem um problema, é descartado. E os velhos? Somos descartados, apesar de sermos portadores de sabedoria. Os idosos podem espalhar sabedoria e as crianças podem aprender deles coisas que nunca saberão dos seus pais. Um poema que conheço [do argentino Francisco Luis Bernardéz] fala de como as flores das árvores crescem a partir do subterrâneo, os idosos são como as raízes da árvore.


Guillermo Marcó: Enquanto Papa, o que mais guarda no coração?


Papa Francisco: O meu coração é um reservatório que devo expandir de vez em quando. Não quero perder nada da beleza do que as pessoas me dão, das suas palavras, das suas conquistas. 


Guillermo Marcó: O que pensa da enorme responsabilidade que tem?


Papa Francisco: O Espírito Santo dá muitos frutos. Sozinho, simplesmente não conseguiria. 








O Papa Francisco tem 86 anos e já correm rumores sobre a sua renúncia.

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O Papa com Guillermo Marcó. 


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