LUXO, OSTENTAÇÃO E DIPLOMACIA SOBRE RODAS
O MUSEU DOS COCHES REAES foi inaugurado em 1905, nasceu da iniciativa da rainha D. Amélia de Orleães e Bragança, esposa do rei D. Carlos I, e exibe no seu espólio uma coleção excecional e única no mundo de viaturas reais, dos séculos xvi ao xix, que inclui coches, berlindas, carruagens, seges, liteiras e cadeirinhas, utilizados pela corte portuguesa e outras cortes europeias e por algumas casas nobres de Portugal até ao advento do automóvel.
Uma coleção que começou com vinte e nove belos exemplares de coches e berlindas: «A rainha D. Amélia queria que Portugal tivesse um museu com a dimensão e prestígio de outras capitais europeias, que pudesse rivalizar com outros museus como o Louvre, em Paris, ou o Hermitage, em São Petersburgo. Estávamos numa época de expansão e criação de grandes museus por toda a Europa e a rainha D. Amélia queria um museu que fosse a expressão de algo único e peculiar. Como Portugal detinha uma coleção fantástica destes carros, surgiu a ideia de criar este museu, que não só dá a conhecer veículos únicos, como mostra a evolução da mobilidade. Um dado extremamente curioso: a rainha D. Amélia, que era uma mulher com mundivisão, não só teve a iniciativa de criar o museu, como tinha um gabinete de trabalho no museu e ela própria foi museóloga», explica Mário Antas, historiador, museólogo e, à data da reportagem, diretor do Museu Nacional dos Coches.
A faceta de museóloga de D. Amélia deverá ficar patente ao público quando for recriado o seu gabinete de trabalho no primeiro espaço do museu, o Picadeiro Real, paredes-meias com o Palácio de Belém: «Temos um projeto para recuperar e recriar o seu gabinete, que ainda tem muita coisa do seu tempo, nomeadamente os móveis, para os visitantes o poderem ver», diz Mário Antas.
O espaço escolhido para a instalação do museu foi o então Picadeiro Real de Belém, lugar de treino, lazer, jogos e exercícios equestres do rei e da corte. O espaço foi adaptado a museu, no início do século xx, pelo arquiteto Rosendo Carvalheira e, numa fase posterior, por Raul Lino, sendo um edifício representativo da arquitetura do século xviii, no qual as pinturas merecem referência especial, restauradas por José Malhoa e Conceição e Silva, dois importantes pintores portugueses.
Aí foram colocados dezanove veículos de rara beleza, e também exemplos de fardamentos, arreios e outros acessórios de cavalaria. Por ordem do rei D. Carlos I, o chão de terra batida foi substituído por um chão de pedra calcária e dada nova utilização ao Picadeiro. Em 1910, com a implantação da República, o museu passou a chamar-se Museu Nacional dos Coches, e integra hoje dois espaços diferentes: o Picadeiro Real e o novo edifício, inaugurado em 2015. «Nestes dois espaços é possível ver estes magníficos veículos numa lógica cronológica, ou seja, desde o mais antigo até ao primeiro veículo motorizado, o que permite às pessoas terem uma perspetiva da evolução da mobilidade em Portugal. E nem todos os veículos estão expostos, temos alguns em reserva ou em manutenção», afirma Mário Antas.
No «antigo» edifício do museu estão expostos coches, berlindas e um carrinho de passeio. Para além destas tipologias, estão em exposição carruagens do século xix, seges, liteiras, malas-postas, entre outros, no novo edifício, erigido no espaço onde outrora funcionaram as oficinas gerais do exército, junto ao Picadeiro.
Na mobilidade humana começaram por ser usados animais de carga, nomeadamente cavalos, tendo-se passado posteriormente para as diligências, desconfortáveis e pouco fiáveis. Perante a necessidade de criar um meio mais seguro, confortável e que permitisse viajar com maior rapidez, surge na cidade húngara de Kocs, em meados do século xv, o primeiro coche. A caixa de transporte era mais estreita e passou a estar suspensa por correias de couro. Passaram a ser chamados «carro húngaro» ou «carros de Kocs», o que haveria de levar à expressão «coche».
«A maioria das pessoas desconhece que algumas denominações usadas ainda hoje na indústria automóvel, e mesmo algumas evoluções tecnológicas, tiveram origem nestes veículos», garante Mário Antas. Uma dessas evoluções prende-se com a berlinda, modelo que se seguiu ao coche. «Enquanto a caixa do coche está suspensa, o que faz com que oscile bastante, a berlinda, para além de ser muito mais leve, deixa de estar suspensa e passa a assentar sobre duas fortes correias de couro esticadas longitudinalmente através de um sistema de enrrolamento chamado cric que se situa no rodado traseiro, o que lhe confere mais estabilidade e conforto», salienta Mário Antas.
A berlinda foi criada na Alemanha, na cidade de Berlim (daí o nome), e por cá deu também origem à expressão popular estar na berlinda: estar numa posição de grande visibilidade, em evidência, em foco, ser o alvo das atenções em qualquer entrada pública ou ocasião de cerimónia.
Depois de visitarmos o Picadeiro, Real percorremos a exposição no novo edifício do museu que, como é normal em grande parte da arquitetura moderna, não foi consensual. Há quem lhe chame hangar ou mausoléu, entre outros epítetos, mas o certo é que estamos perante um espaço moderno, funcional e que marca o perfil da cidade junto ao rio. Inaugurado em maio de 2015, apresenta o núcleo mais representativo da coleção e saiu do traço do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, galardoado com o Prémio Pritzker. O edifício é constituído por um pavilhão principal com uma nave suspensa e um anexo, com uma ligação aérea que assegura a circulação entre os dois edifícios. Inclui espaços para exposição permanente e temporária, áreas de reservas e uma oficina de conservação e restauro, biblioteca, arquivo, auditório e uma loja.
«Este edifício foi pensado para albergar este museu em particular e para grandes afluências de público, até porque é um dos museus mais Antas.
visitados em Portugal. Está preparado para a eventualidade um terramoto ou sismo, a exposição encontra-se no piso superior para estar protegida em caso de cheia ou um tsunami em consequência de um terramoto, garante o acesso às pessoas com mobilidade reduzida e o espaço interno permite que os visitantes desfrutem do museu de uma forma muito tranquila», explica à nossa reportagem Mário Antas.
Da imensa coleção do museu destacamos quatro exemplares: os três monumentais coches que integraram a sumptuosa embaixada enviada por D. João V ao Papa Clemente XI em Roma, em 1716, com iconografia em talha dourada glorificando os Descobrimentos, e o raro exemplar do coche de viagem de Filipe II (finais do século xvi) de Madrid a Lisboa, e que é considerado o coche mais antigo a nível mundial. «Filipe II de Espanha, primeiro de Portugal, decidiu fazer uma viagem entre as duas cidades.
Foi uma viagem que demorou a ser preparada e concretizada. A viagem demorou cerca de sessenta e oito dias, com cinquenta e duas paragens ao longo do caminho. A comitiva integrava outros veículos como carros de apoio. O coche em si, por fora, é muito sóbrio, mas exuberante no interior. E tem uma particularidade: como a viagem iria demorar, foi colocado por baixo dos assentos um sistema de evacuação para o rei fazer as suas necessidades fisiológicas sem ser necessário parar», conta Mário Antas.
Quanto aos coches da comitiva ao Papa, Mário Antas explica que os coches não eram vistos comos meros veículos de transporte mas, acima de tudo, como símbolo de poder, de ostentação e diplomacia: «Não há um coche igual a outro. Cada coche é único, e a mensagem que se pretendia passar está implícita nos minuciosos detalhes da sua iconografia. Daí a singularidade. Neste sentido, era também um veículo de diplomacia, de demonstração de poder, de capacidade financeira. Exemplo disso foi a iniciativa de D. João V. O rei pretendia que o Vaticano nomeasse um cardeal-patriarca para Portugal, a reconhecer Lisboa como a capital da cristandade no Ocidente. Num gesto de grandiosidade e diplomacia, enviou uma embaixada ao Papa Clemente XI, composta por cerca de quinze coches luxuosos. Faziam ainda parte do cortejo inúmeros coches de acompanhamento, com homens da nobreza, do clero, príncipes e ministros.
De entre esses veículos todos, sobressaíram três esplêndidos coches triunfais em estilo barroco italiano. Esses coches não eram apenas veículos mas obras de arte, cada um exaltando Portugal de uma maneira única. É fácil perceber a sensação e o impacto que a embaixada provocou na cidade de Roma. O rei conseguiu demonstrar que era senhor de um vasto império, por onde espalhou a fé cristã. E o Papa acabou por aceder e concedeu o que o rei pretendia», explica Mário.