BEIJA-ME
PORQUE É QUE AS PESSOAS COMEÇARAM A BEIJAR-SE NA BOCA? PELA PAZ, PROCRIAÇÃO E ALIMENTAÇÃO.
Jakob Wetzel
O herpes também tem um lado positivo. Por mais irritante que seja a comichão e as bolhas no rosto, e por mais incomodativo que seja o facto de o vírus nunca deixar por completo o sistema da pessoa, e por menor que seja o consolo para quem tem surtos agudos, pelo menos para a ciência os vírus do herpes são verdadeiramente úteis: como o seu genoma pode ser analisado e rastreado ao longo do tempo, estes vírus permitem tirar conclusões sobre quando e como as pessoas foram infetadas. Isso ocorre frequentemente através de gotículas, ou seja, através da boca.
Cientistas liderados pelos geneticistas Meriam Guellil, da Universidade de Tartu, e Lucy van Dorp, da University College London, compararam o ADN moderno dos vírus do herpes com o antigo e relataram as suas descobertas na revista Science Advances: embora os vírus do herpes existam há milhões de anos, o ramo do vírus que hoje é prevalecente só se estabeleceu na Europa nos últimos 5000 anos. Eles acreditam que tudo começou com os migrantes das estepes euroasiáticas que se mudaram para o oeste, em particular na Idade do Bronze. Essas pessoas levavam consigo os novos vírus do herpes – e não apenas os vírus, mas também a receita patenteada para os propagar o mais rápido possível. Se até essa altura os vírus eram transmitidos sobretudo de mãe para filho, os migrantes levaram uma nova técnica cultural para a Europa: o beijo romântico.
Como é que os humanos chegaram ao beijo?
O beijo, tão comum na Europa, é, na verdade, uma importação cultural. Com efeito, não é óbvio que os amantes se beijem na boca. A ideia de que isso é comum em todo o mundo e sempre foi assim é um mal-entendido difundido no ocidente.
Essa é a crença de uma equipa liderada pelo antropólogo William R. Jankowiak, da Universidade do Nevada, publicada na revista American Anthropologist. O mal-entendido provavelmente baseia-se no facto de as pessoas tenderem a considerar a sua própria cultura como a norma.
O cientista natural Charles Darwin assumiu que em 90% das culturas existe o ato de beijar. Contudo, os investigadores liderados por Jankowiak utilizaram um banco de dados e as avaliações de etnólogos para comparar mais de 168 culturas e chegaram à conclusão de que apenas em 77 culturas, ou seja, menos de metade, as pessoas beijam-se na boca por amor. Quanto mais complexa uma sociedade, mais frequentemente as pessoas beijam dessa maneira. Esta técnica cultural é mais comum no Médio Oriente, Ásia e Europa. O beijo é menos comum em África, na América Central e do Sul.
À primeira vista, o beijo parece estar bem investigado. Nos últimos anos os cientistas compilaram muitos factos interessantes, por vezes um pouco bizarros. Desde logo, o de que beijar é saudável. Durante um beijo intenso são trocados 80 milhões de germes, por isso beijar treina o sistema imunológico e até pode atenuar as reações alérgicas.
Para bem dos tímpanos do seu amado, no entanto, deve evitar beijar os ouvidos, pois um beijo pode produzir um estalido com um volume de 130 decibéis. Dependendo da técnica, um beijo movimenta mais de 30 músculos por cabeça. Os investigadores de beijos chamam-se filamatologistas. As pessoas com medo patológico de beijos sofrem de filemafobia. E dois terços das pessoas inclinam instintivamente a cabeça para a direita ao beijar, e as outras para a esquerda. A preferência desenvolve-se no útero.
No entanto, em relação a como e porque se desenvolveu o beijo na boca, existem explicações muito divergentes. Algumas teorias, obviamente, pertencem ao reino das lendas. O escritor grego Plutarco, por exemplo, relatou que Rómulo, o fundador de Roma, proibiu as mulheres de beberem vinho e os homens deviam verificar-lhes os lábios para confirmar se elas respeitavam a ordem de abstinência. Isso deu origem à lenda de que ambos os sexos adquiriram o gosto pelo beijo e que foi inventado pela necessidade de controlo. Uma afirmação que o próprio Plutarco não fez.
Por outro lado, Plutarco mencionou outra teoria que atribui ao filósofo Aristóteles. De acordo com essa teoria, após a destruição da sua cidade natal e da fuga para Itália, as mulheres troianas decidiram terminar a jornada e queimar os navios. Para apaziguar os maridos, selaram-lhes a boca com beijos. O beijo seria, assim, uma estratégia de apaziguamento.
O estudo científico sério sobre a origem do beijo teve início no século xix. Charles Darwin rastreou a técnica cultural até à necessidade humana de proximidade. Considerava que o beijo não era inato, mas «hereditário», ou seja, natural. As pessoas desejavam tocar-se. Nos locais onde não era hábito beijar na boca acariciavam ou esfregavam os narizes, por exemplo.
Para outros investigadores, tudo começou com a comida. O zoólogo e cientista comportamental austríaco, Irenäus Eibl-Eibesfeldt, e o seu colega britânico, Desmond Morris, por exemplo, interpretaram o beijo como uma relíquia da alimentação boca a boca. Tal como se verifica com as aves, os progenitores dos seres humanos pré-históricos também deviam mastigar o alimento que depois empurravam para a boca ainda sem dentes das crias.
Sigmund Freud argumentou de um modo diferente, mas de uma maneira
semelhante. Segundo o fundador da psicanálise, o beijo recordava às pessoas a amamentação no seio materno. Freud também identificou o primeiro desejo sexual em ação durante a amamentação na infância. Além do beijo, alegava que também se desenvolveu o hábito de chupar o polegar.
Freud não podia ter previsto que os bebés ainda não nascidos podem ser observados por ecografia a chuparem o polegar no útero sem nunca terem visto um seio.
Copiado dos animais?
Também há cientistas que traçaram o beijo até aos comportamentos dos animais. O psiquiatra e criminologista alemão Paul Näcke, por exemplo, apontou que um gato macho morde a fêmea no pescoço durante o ato sexual. Isso sugeria que o beijo humano «originalmente talvez tenha servido como meio de fixação do corpo durante o coito», disse Näcke no início do século xx. De acordo com esta teoria, os homens inventaram o beijo para evitar que as mulheres fugissem durante o sexo. O facto de a saliva dos homens conter a hormona sexual testosterona, que pode aumentar o desejo nas mulheres, aponta no mesmo sentido.
De acordo com uma hipótese final, o beijo é uma estratégia de seleção dos parceiros. Para a investigadora Ingelore Ebberfeld, sexóloga que faleceu em 2020, o beijo assemelhava-se ao ato de cheirar no reino animal. Segundo ela, o beijo está associado ao olfato. Ao cheirarem-se e saborearem-se mutuamente, as pessoas que se beijam testam quimicamente se são compatíveis. Esta tese do cheiro explica não apenas os beijos na boca, mas também outros abaixo da cintura. Os animais cheiram-se na zona genital, e os primeiros seres humanos provavelmente faziam o mesmo. «Cheirar e lamber as nádegas servia para os nossos antepassados estabelecerem contacto sexual, mas quando os humanos se ergueram esse contacto foi transferido de «baixo para cima», escreveu Ebberfeld no seu livro Beija-me. Isso tornaria o beijo um substituto de cheirar a região genital – e uma consequência de caminharmos eretos.
Um papel especial é provavelmente desempenhado por um grupo de genes particularmente importantes para o sistema imunológico e que moldam o odor natural do corpo de cada ser humano. Em 1995, uma experiência do biólogo suíço Claus Wedekind tornou-se famosa. Pediu a estudantes do sexo feminino da Universidade de Berna que avaliassem o cheiro das camisolas que tinham sido usadas durante dois dias pelos colegas do sexo masculino. As mulheres preferiram, na sua maioria, o cheiro dos homens cujos genes sugeriam um sistema de defesa imunológica diferente do seu. Os investigadores atribuíram isso ao facto de que os pais com sistemas imunológicos diferentes fornecem aos filhos um conjunto genético mais diversificado para lidar com as doenças.
Investigadores de Dresden e Tübingen chegaram recentemente a uma conclusão semelhante. Recorrendo a questionários e análises de ADN, conseguiram determinar que é frequente as pessoas cujos genes correspondentes mais diferem envolverem-se numa relação. No entanto, mesmo que uma análise bioquímica possa estar por detrás do beijo, quando, onde e por que motivo esta técnica cultural se desenvolveu de um modo tão diferente em todo o mundo é uma questão que ainda permanece em aberto. Os historiadores antigos prestaram pouca atenção ao fenómeno e a identificação das fontes é difícil.
Um gesto público ou íntimo?
Os etnólogos ocidentais, por exemplo, defendiam a teoria de que na China e no Japão as pessoas não se beijavam na boca. Na Europa, o beijo tornou-se um ritual para várias ocasiões. A Igreja cristã primitiva conhecia o beijo na boca como saudação de paz. Mais tarde, as pessoas beijavam bocas, bochechas, mãos, pés, anéis de sinete ou até cruzes. No Extremo Oriente, as coisas eram diferentes: no final do século xix, o viajante francês Paul d’Enjoy relatou que na China os nativos ficavam horrorizados com os beijos dos europeus e falavam de canibalismo. No entanto, a literatura antiga e as gravuras mostram que o beijo era conhecido no Extremo Oriente, mas não era um gesto público. Tratava-se de uma prática sexual, por isso os ocidentais, como d’Enjoy, não a viam.
Quem inventou o beijo, se foi reinventado em diferentes culturas e como se desenvolveu, é difícil de estabelecer. Ebberfeld reuniu artefactos com presumíveis motivos de beijos de tempos pré-históricos, que pelo menos lançam alguma luz sobre o assunto. Um alfinete de peito da Mesopotâmia do terceiro milénio antes de Cristo mostra um casal a beijar-se. O beijo também aparece nos mitos dos Sumérios. Uma figura de terracota do antigo Peru, datada entre 100 a. C. e 600 d. C., aparentemente retrata um «beijo francês». Um desenho do México pré-histórico mostra duas figuras, que supostamente seriam deuses, a trocarem as almas através de um beijo. Guellil, Van Dorp e a sua equipa datam o primeiro registo escrito de um beijo na Idade do Bronze no sul da Ásia.
E na Europa? Não nos foi transmitido como os amantes se aproximavam um do outro nos tempos pré-históricos. As representações mais antigas de figuras humanas não fornecem informações. Provavelmente, há cerca de 40 mil anos no oeste da Europa as pessoas começaram a pintar as paredes das cavernas e continuaram essa prática até ao final do último período frio, há cerca de 10 mil anos. Os motivos preservados mostram em geral animais e caçadores. Beijos pré-históricos, por outro lado, não foram descobertos – o que não significa que não existissem. Talvez as pinturas servissem um propósito diferente e os beijos simplesmente não tinham lugar nelas.
De acordo com o estudo sobre o herpes, o beijo só chegou à Europa na Idade do Bronze, vários milhares de anos depois. Certamente já era conhecido no tempo da Grécia e da Roma antigas. A lenda das mulheres troianas que beijavam não é a única evidência disso. Os vasos e as tigelas gregas também mostram cenas de beijos. Os Romanos desconheciam os vírus mas compreendiam o conceito de infeção. Deste modo, no século I o imperador Tibério proibiu o beijo nas ocasiões oficiais para evitar a propagação de doenças. Se isso estava relacionado com o herpes, atualmente não é claro.
O beijo pode ter origem num ritual de alimentação
O artista russo Dimitry Vrubel pintou o beijo socialista fraterno entre Leonid Brejnev e Erich Honecker no muro de Berlim em 1990.
Os vasos e taças gregas por vezes mostram cenas de beijos muito reveladoras.