ELVIRA FORTUNATO

«Tenho o gosto e a sorte de trabalhar numa área científica mais aplicada»


Elvira Fortunato é professora catedrática no Departamento de Ciência dos Materiais da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa. Foi pioneira na investigação sobre eletrónica transparente e nos últimos dez anos já ganhou mais de 18 prémios internacionais, e tem contribuído para uma melhor perceção da ciência. Uma carreira de sucesso que começou com a imensa curiosidade pelas experiências que fazia na escola. Motivos mais do que suficientes para uma conversa com a investigadora. 



Mário Costa

Carlos Alexandrino (Fotos)





Selecções do Reader’s Digest:

O que significa para si vencer o prémio Personalidade de Confiança em Investigação Científica, votado pelos leitores da Selecções do Reader’s Digest?


Elvira Fortunato:

Vencer o prémio Personalidade de Confiança na área da Investigação Científica deixa-me muito contente e muito feliz por saber que os Portugueses, acima de tudo, acreditam na ciência, no poder da ciência e também porque confiam nela como forma de trazer conforto, prosperidade e bem-estar a todos. Isto é, acreditam que a ciência é a forma capaz de responder aos desafios do futuro que muito nos preocupam. 


Por outro lado, como a revista Selecções do Reader’s Digest é uma revista altamente prestigiada com uma história com mais de noventa e cinco anos, distribuída em mais de 70 países, uma das quatro revistas mais lidas no mundo, por mais de 40 milhões de pessoas, números que atestam por si o reconhecimento que os leitores têm tido sobre a qualidade desta revista, enche-me ainda mais de orgulho e responsabilidade pelo facto de estar a ser homenageada por uma revista com esta história.


No caso particular sobre o estudo «Marcas de Confiança», na sua 22.ª edição, agradeço aos Portugueses o facto de confiarem no que faço e que a todos beneficiará ao trazer conhecimento e tecnologia que sirva o bem-estar de todos, de uma forma sustentável, mas em particular aos Portugueses. Esse orgulho é enorme, pois pelo segundo ano consecutivo elegem-me Personalidade de Confiança em Investigação Científica.

Aliás, gostaria de partilhar com todos os leitores a seguinte expressão de Warren Buffet e que também está no site «Marcas de Confiança»: «A confiança é como o ar que respiramos – quando está presente, ninguém repara, quando está ausente, reparam todos.»


 

Será mais um exemplo de que a investigação em ciência ultrapassou os limites dos laboratórios e é hoje um tema presente no dia a dia da sociedade?


Claro que sim, não só porque o cidadão está mais informado, mas também porque, hoje em dia, a ciência está na ordem do dia por tudo o que nos tem proporcionado, nomeadamente com a realização em tempo recorde das vacinas contra o SARS-CoV-2, com base exclusiva no conhecimento que a ciência proporcionou. Tenho a certeza absoluta de que hoje em dia qualquer pessoa reconhece a importância da ciência e, acima de tudo, consegue ver uma aplicação prática, que entende e sabe que dela pode beneficiar. Tenho o gosto 


A pandemia da COVID-19 e o papel que a ciência teve e tem no seu combate trouxe mais visibilidade à importância da investigação?


Como disse na questão anterior, a pandemia da COVID-19 veio, no fundo, abrir as portas dos laboratórios à sociedade. Por vezes esta comunicação não é fácil, mas é fundamental que exista. Cada vez mais, nós, os cientistas, temos a obrigação de falar e saber comunicar com a sociedade, pois só com uma sociedade cada vez mais informada conseguimos criar sinergias e colaborar mais em conjunto, buscando prosperidade com responsabilidade, como referi. 


Sempre quis ser investigadora ou foi um caminho que foi descobrindo no percurso escolar? Consegue identificar um momento no seu percurso em que teve essa certeza?


Esta questão deve ser a que mais me têm feito nos últimos anos. Quando era mais pequena e andava no liceu escolhi a área das ciências, sabia que era esta área que me atraía, mas daí a querer ser cientista ia uma distância muito grande. Contudo, quando chegou a altura de escolher o curso universitário, também tinha uma certeza: queria ser engenheira, fazer coisas, contribuir para um mundo melhor com mais soluções, no fundo ser útil à sociedade. Por sorte, no ano em que ia entrar para a universidade a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa tinha acabado de se instalar no monte da Caparica com cursos novos na área das engenharias. 

Não pensei duas vezes – nasci, cresci e estudei em Almada, penso que foi uma conjugação de interesses muito forte, e entrei em 1982 para o curso de Engenharia Física e dos Materiais. Na altura existiam dois ramos, um de Física e outro de Materiais (agora existem duas engenharias, uma em cada área), eu escolhi o ramo de Materiais e só no decorrer do curso e depois de ter sido convidada para monitora e começar a trabalhar num grupo de investigação na área da conversão de energia e microeletrónica, liderado pelo Professor Leopoldo Guimarães (diretor da Faculdade de Ciências e Tecnologia e depois reitor da Universidade NOVA de Lisboa), só nessa altura, depois de trabalhar num laboratório de investigação e contactar com o mundo científico, é que me apercebi que era isto que queria fazer. Tive a sorte de entrar para um grupo de investigação já na altura muito competitivo (liderado pelo Professor Rodrigo Martins), e foi este o meu primeiro contacto com a ciência, que soube motivar-me e acreditar que na ciência a ambição e a criatividade estão de mãos dadas com a nossa imaginação.


Foi uma aluna brilhante ou mais descontraída?


Fui boa aluna, não posso dizer que fui uma aluna brilhante, fui brilhante nas disciplinas de que mais gostei, tive vários vintes, tinha acima de tudo muito método e era muito organizada. Sempre gostei de fazer resumos das matérias lecionadas e já depois, quando era assistente, os meus resumos/apontamentos ainda eram utilizados, neste caso pelos meus alunos.


Houve pessoas ou modelos de investigadores que a tenham influenciado ou que ainda a influenciem?


Sim, o Professor Rodrigo Martins, entretanto meu marido, influenciou-me muito, em especial na parte relacionada com a perseverança, o nunca desistir e, acima de tudo, trabalhar muito por gosto e não por obrigação. São marcas que fazem parte do nosso laboratório, e só conseguimos chegar onde chegámos porque sobretudo gostamos e acreditamos muito no que fazemos. Não há impossíveis no laboratório. Mas o que mais nos entusiasma é que colocamos marcos altos e batemo-nos por lá chegar, pois acreditamos no que fazemos e para isso contamos com uma equipa motivada que nos segue e ajuda a escalar estas montanhas!

Depois, num outro plano, gostava de referir Madame Curie. Sempre me fascinou o que conseguiu fazer no tempo em que viveu e o tipo de sociedade que teve de enfrentar. Tive a sorte e o gosto de escrever recentemente o prefácio do livro intitulado Madame Curie escrito pela filha Ève Curie, e pude constatar com mais pormenor a vida que ela teve e, acima de tudo, a mulher que foi, dotada de fortes convicções, de uma inteligência acima da média, uma intuição fora do comum e uma persistência e resiliência infinitas. 


Como é que alguém que pretendia seguir Engenharia do Ambiente acaba por ir parar à Engenharia dos Materiais e se torna uma investigadora de renome?


Realmente a minha primeira opção era Engenharia do Ambiente, contudo acaba por estar também relacionada com a Engenharia dos Materiais. Os materiais acabam por estar em todas as aplicações, são necessários para construir tudo o que nos rodeia e agora mais do que nunca, com a preocupação que todos temos com a ecossustentabilidade! Sempre tive uma preocupação muito grande em trabalhar com materiais de origem sustentável e em utilizar tecnologias de processamento amigas do ambiente. Muito embora hoje em dia estas questões do meio ambiente estejam muito presentes face à poluição e às alterações climáticas, foi desde sempre uma preocupação do laboratório e acaba por estar refletido em tudo o que fazemos. Na verdade, em 2008 registámos a nível mundial a marca «e-paper – Green electronics for the future», que hoje em dia é uma realidade mundial!


Como é que a sua família reagiu a essas escolhas numa área em que não era habitual a presença de mulheres, principalmente em Portugal?


A minha família nunca me condicionou relativamente às escolhas que fiz. A única coisa era que, sendo a área dos Materiais muito recente em termos de formação avançada em Portugal, na altura não se sabia bem quais as aplicações ou áreas de empregabilidade. Mas isso não foi problema, sempre confiaram nas minhas escolhas, havia uma coisa que era mais importante que o tipo de escolha em si, apostar sempre no conhecimento e acreditarem em mim.


Ao mesmo tempo que lidera o CENIMAT ainda faz investigação com sucesso, que lhe tem granjeado diversos prémios. Qual é o «truque» ou a metodologia que usa para conseguir alcançar os objetivos?


Não há truque, ou melhor, o truque é o trabalho e saber trabalhar em equipa e comunicar com ela! Mesmo coordenando um centro de investigação (CENIMAT) que por sua vez faz parte de um laboratório associado em conjunto com um polo na Universidade de Aveiro, isso não invalida que não continue a fazer investigação científica. Felizmente, tenho a melhor equipa do mundo, quer de investigadores, alunos e o próprio staff de gestão e administrativo. Depois há que organizar e gerir da melhor forma o tempo, pois o dia só tem vinte e quatro horas. 


Sendo cientista, casada com um cientista, alguma vez consegue «desligar» do papel de investigadora?


Como não encaro o meu trabalho como uma obrigação, mas algo que me dá gozo e prazer, acaba por ser uma paixão, e as paixões são imateriais, não dependem do lugar físico, mas do lugar sentimental. 

Parafraseando Vinicius de Moraes: «O amor, que seja eterno enquanto dure.»


As investigações que realizam envolvem equipas multidisciplinares. Como se conseguem concentrar diversas formas de olhar a realidade num só objetivo?


Essa é mesmo parte do sucesso que temos tido. Cada vez mais os problemas que enfrentamos são problemas complexos, e por outro lado a própria ciência também evoluiu ao longo dos anos. Para resolver todos estes problemas temos de ter equipas multidisciplinares. Aliás, a inovação ou os maiores sucessos que temos tido surgem precisamente na interface entre várias áreas científicas. Se fôssemos uma equipa todos com a mesma formação e da mesma área, iríamos olhar para o problema da mesma forma e com limitadas hipóteses de solução.


Quando poderemos usufruir das inúmeras aplicações que pode vir a ter o transístor de papel?


Isso não depende diretamente de mim, mas acima de tudo da sociedade e das empresas. A eletrónica de papel é uma eletrónica sustentável, biocompatível, biodegradável e pode ser reciclada. Aliás, o conceito de economia circular aplica-se na sua totalidade, coisa que é impossível de ser feita com a chamada eletrónica convencional. Veja-se, por exemplo, o caso do lixo eletrónico e de todas as implicações que tal acarreta. Mas esta é uma tecnologia altamente disruptiva e, como tal, leva mais tempo a ser incorporada. Foi criado há dois anos um laboratório colaborativo, o Almascience, que tem por objetivo fazer exatamente a ponte entre a universidade e o mundo empresarial de forma a conseguir transformar o conhecimento que é gerado nos laboratórios de investigação em inovação, em produtos, em mais-valias ou mesmo valor acrescentado em produtos novos ou já existentes, precisamente na área da eletrónica de papel. Temos agora também uma oportunidade única em Portugal, que é o acesso aos fundos do Programa de Recuperação e Resiliência e também os fundos do próprio PT2030, e penso que através das várias agendas mobilizadoras em que nos encontramos envolvidos, assim como dos projetos, iremos incorporar esta nova tecnologia com marca portuguesa. Além disso, em termos europeus lideramos o conceito de que cada vez mais temos de fazer eletrónica sustentável, que vá para além do silício e sirva a circularidade dos produtos que produzimos e desenvolvemos. Nesse sentido, coordeno a primeira infraestrutura de eletrónica flexível sem silício, designada EMERGE (Infraestrutura de Investigação de Eletrónica Impressa), e pretendemos que este conceito seja claramente relevante nas futuras políticas europeias ligadas à microeletrónica.


A investigação feita em Portugal e os cientistas portugueses são aclamados e respeitados no mundo científico internacional. O que falta para serem mais valorizados em Portugal?


Penso que também são valorizados em Portugal. O que acontece é que as notícias por vezes dão mais destaque a prémios dados lá fora e não tanto a prémios dados dentro de Portugal. Eu própria tenho ficada admirada com os vários prémios que existem em Portugal. Não fazia ideia de muitos até ao momento em que os recebi. Este prémio Personalidade de Confiança em Investigação Científica só o fiquei a conhecer quando agora o recebi. Há ainda um longo caminho a ser feito, em particular na divulgação destes prémios, mas quero desde já dar os parabéns à Selecções do Reader’s Digest, em primeiro lugar pela existência desta categoria e, em segundo, por me ter sido atribuído. Acho que, juntos, media, investigadores, cientistas e professores, se soubermos colaborar vamos mais longe, não só para promover a ciência, mas para mostrar o quão útil e necessário ela é para todos nós! Para isso, precisamos de ter uma sociedade cada vez mais educada, porque só assim será mais democrata e saberá escolher e apoiar as boas decisões, que claramente terão de ser sustentadas pela evidência científica! Penso que este é o caminho que devemos seguir e prosseguir. 

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