Eles acolhem deslocados de todo o mundo
As pessoas que convidam refugiados para as suas casas dão um gigantesco salto de fé. Aqui estão três das suas muitas histórias.
Lisa Fitterman
CHEGAM DE ÁFRICA, da Ásia Central, do Médio Oriente, da Ucrânia. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, em 2022 mais de 100 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas devido à guerra, à fome, aos desastres naturais ou a perseguições várias. Fogem com os poucos pertences que conseguem transportar e as suas vidas entram de repente num limbo.
O que lhes vai acontecer? Cerca de 4,5 milhões encontram refúgio nos campos de refugiados sob tutela das Nações Unidas, pelo menos 2 milhões encontram-se em campos de refugiados improvisados e inúmeros outros procuram abrigo em cidades estrangeiras – em quartos de hotel, centros comunitários ou apartamentos básicos de onde tentam relançar as suas vidas.
Alguns, com mais sorte, são convidados a ficar em casas particulares, partilhando o espaço com pessoas que os querem ajudar, muitas vezes durante meses. Os refugiados recebem uma verba do governo para gastar em alimentos e outras necessidades até encontrarem emprego e se tornarem autossuficientes. Alguns dos anfitriões também recebem pagamentos mensais (ou por vezes dinheiro a título de pagamento da renda e de despesas dos refugiados) para ajudar a mitigar os custos de ter convidados.
Receber pessoas em casa tem os seus desafios. Um deles é o de navegar entre culturas diferentes e o stress quotidiano que advém de viver com estranhos em casa. Mas as recompensas podem ser fantásticas.
«Ela é como uma mãe»
Num sábado nublado de 2021, o centro temporário de doação de roupa instalado num parque de estacionamento perto do Aeroporto Internacional Pearson, em Toronto, estava cheio de refugiados afegãos que se tinham hospedado nos hotéis próximos, todos com máscaras faciais devido à pandemia. Fiona Harrower, voluntária na Canadian Connections, o grupo de solidariedade que patrocinava o evento, dobrava roupa que ainda não tinha sido doada.
«Viu aquela jovem com as sobrancelhas bonitas?», perguntou a voluntária que ajudava Fiona. «O nome dela é Rukhshana. Perguntou se tínhamos livros para doar.»
Fiona ficou intrigada. Professora reformada, considera que os livros são tão necessários ao nosso bem-estar quanto três refeições equilibradas por dia. Quis saber mais sobre aquela jovem que adorava ler. Por isso, dias mais tarde, ela e alguns colegas encontraram-se num café na baixa de Toronto. Fiona, de 62 anos, ouviu Rukhshana Ahmadi, pertencente aos Hazaras – uma minoria étnica e religiosa que enfrenta uma violenta discriminação no Afeganistão –, contar a sua história.
Depois dos estudos universitários trabalhou como tradutora de inglês. Mas a seguir à tomada de poder pelos talibã, ela e a mãe, a tia e três sobrinhos, dirigiram-se ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, para tentar sair do país. Era 22 de agosto de 2021. Dentro do complexo do aeroporto foram separados, mas Rukhshana acabou por conseguir vê-los à distância. «Eu tinha todos os nossos documentos na mão e comecei a acenar para eles. Depois, um bombista suicida fez-se explodir. O mundo ficou preto.»
Recobrou os sentidos nos braços de uma mulher soldado do Exército norte-americano. A soldado estava a falar com ela, mas Rukhshana não conseguia ouvir. À volta delas, o cenário era de horror. Uma mãe angustiada embalava o filho morto. Um pai desmaiou sobre o corpo sem vida da filha. Por todo o lado, os soldados norte-americanos tentavam tornar a zona segura.
«O que aconteceu?», perguntou Rukhshana, com a voz rouca devido à poeira e aos destroços. Num bocado de papel, a soldado escreveu uma palavra: «Bomba.»
«O que aconteceu à minha família?», perguntou a chorar. «Onde está a minha mochila?» Era lá que tinha o telemóvel e o passaporte.
Mais tarde veio a saber que a família tinha sido evacuada do aeroporto e regressou a casa. De alguma forma, a mochila, rasgada, foi recuperada, mas tudo o resto – um computador portátil e um livro de histórias que o avô lhe tinha dado há anos e que já tinha as páginas brilhantes de tanto serem viradas – tinha desaparecido.
«Foi por isso que pedi um livro», disse Rukhshana às outras mulheres, em Toronto. «Preciso de ler.»
Nesse momento, Fiona assustou-se com um raio de sol que, ao furar as nuvens, iluminou o rosto da jovem refugiada. É uma mensagem da mãe, pensou, lembrando-se daquele dia cinzento em que vagueava pelo cemitério local à procura do local perfeito para enterrar o corpo da mãe, recentemente falecida. Descobriu-o quando um raio de sol incidiu numa colina verdejante com vista, como se alguém, no além, a estivesse a instruir: é aqui.
Sem hesitar, virou-se para Marcella Tomàs, cofundadora da Canadian Connections, sentada ao seu lado, e disse: «Creio que é suposto que esta rapariga venha viver comigo.»
A MUDANÇA DE RUKHSHANA do hotel onde se instalara não foi rápida. Primeiro havia que tratar da documentação. O contrato de seis meses que as mulheres assinaram, estipulava que era esperado que Rukhshana pagasse a Fiona o estipêndio que recebia do Programa de Apoio do governo, no valor de cerca de 800 dólares por mês. Por fim, em janeiro de 2022, Rukhshana mudou-se para uma casa geminada em Mississauga, no Ontário, onde Fiona vivia sozinha.
Não demorou até que entre as duas se forjasse uma amizade e o reconhecimento franco das suas diferenças.
Por vezes, Rukhshana, agora com 24 anos, fica chorosa e pouco comunicativa, preocupada com o destino da família, que conseguiu chegar ao Paquistão no outono passado. (Já se candidatou à reunião familiar no Canadá.) Fiona demorou a compreender as alterações de humor de Rukhshana. Agora, aceita que não tem de se relacionar com ela a esse nível – e, sinceramente, não o conseguiria fazer.
«Eu nunca tive de deixar para trás a minha família, nem me vi envolvida num atentado à bomba», diz com calma, lealmente protetora da jovem que já considera da família. Rukhshana acrescenta: «A humanidade surge quando se respeita e aceita o outro.»
As duas estão muito à vontade uma com a outra. «Conversar é o que mais fazemos juntas», diz Rukhshana.
«Isso e ver programas de televisão. O nosso preferido é Survivor.»
Apesar de terem dietas diferentes – Rukhshana é halal –, fazem as refeições juntas sempre que os horários de Rukhshana o permitem: começou uma graduação em Jornalismo na Universidade Metropolitana de Toronto. Na realidade, o desafio agora é garantir que acorda a tempo de apanhar o comboio e chega a horas às aulas. «Já a ameacei que lhe atiro um balde de água gelada se não acordar», diz Fiona a rir. «Ainda não cheguei a esse ponto – ainda.»
«A Fiona é como uma mãe», resume Rukhshana com um sorriso tímido. «Faz as mesmas coisas que a minha mãe para garantir que me sinto protegida e amada. Podemos não ter a mesma religião ou cor de pele, mas temos corações gentis. Éramos estrangeiras de partes diferentes do mundo e agora estamos a construir uma vida com sentido juntas.»
Fiona sabe que possivelmente Rukhshana irá viver com a família quando esta chegar ao Canadá e apoia-a nisso. No entanto, ambas sabem que, quando essa altura chegar, será agridoce. Estão determinadas a manterem-se próximas mesmo quando já não viverem na mesma casa.
Por agora, diz Rukhshana a Fiona com um sorriso, «não vou a lado nenhum. Está encalhada comigo». E riem como velhas amigas.
Quando a Fé e a Paciência Compensam
Rainer e Maren Koch esperaram na sala de reuniões da sede da autarquia de Schaumburg, perto de Hanover, na Alemanha, numa manhã chuvosa de janeiro de 2016. Um pequeno grupo de funcionários e de pais também lá está, a maioria em silêncio, com capas de chuva desabotoadas e chapéus na mão. Foram conhecer jovens rapazes refugiados, sete vindos da Argélia e de Marrocos e um da Eritreia: Samuel,* de 14 anos, que iria ficar com a família Koch.
Depois de mais de três meses de espera sem notícias – após terem falado com os quatro filhos biológicos (na altura com idades entre os 11 e os 18 anos) sobre o desejo de acolherem em casa um refugiado e após uma visita de uma assistente social que lhes disse que estava previsto receber uma pessoa durante seis meses e que poderiam encurtar esse tempo se as coisas não resultassem – tudo se resumia àqueles poucos minutos.
«E se ele já passou por episódios de violência que o deixaram marcado?» Maren, técnica assistente numa farmácia e também funcionária num programa residencial para adultos com deficiência, expressou as suas dúvidas ao marido. «Conseguiremos lidar com isso? Os miúdos aguentarão?»
«Lembra-te de Hebreus 13:2», respondeu Rainer, que trabalha no desenvolvimento e aconselhamento de igrejas. Recordou à mulher que, ao serem hospitaleiros, «alguns acolheram anjos sem o saber».
Enquanto os jovens refugiados enchiam a sala, Rainer, agora com 52 anos, tentava ler-lhes a expressão, o conjunto teimoso de ombros e pés que mal se levantavam do chão. «Devem sentir-se tão sós», sussurrou a Maren. «Será isto o que significa ter perdido tudo?»
Depois, de repente, quando Samuel apareceu diante deles, uma ideia que antes parecia nebulosa assumiu a forma de um rapaz de quem nada conheciam, exceto o nome, e que pertencia à Igreja Eritreia Ortodoxa de Tewahedo.
O casal passou trinta minutos com Samuel e um intérprete de Tigrinya, o idioma mais falado na Eritreia. Rainer e Maren tentaram comunicar com ele por meio de gestos, imagens e sorrisos. Mas o jovem mal olhou para eles e, mais tarde, no carro, sentou-se silencioso no banco de trás sem que os seus olhos mostrassem qualquer emoção.
Observando-o pelo retrovisor, Rainer pensou: Está a começar algo de inesperado, uma nova fase para a família. Sabia que, para o melhor ou para o pior, não tinha instruções.
NO INÍCIO ERA SÓ TENSÃO. Samuel passava muito tempo no quarto, taciturno. Estava a tentar entender o que o rodeava, a nova escola, a língua que não compreendia. Rainer e Maren não sabiam se aquela atitude se devia às diferenças culturais, à puberdade ou se era teimosia.
Apesar da presença, uma vez por semana, de um tradutor para ajudar a família a aprender a comunicar com o jovem, se havia progressos eram difíceis de ver. Samuel sentava-se com a família a jantar, mas não comia muito.
«Se ao menos ele conseguisse perceber que queremos o melhor para ele», dizia Maren ao marido.
O prazo de seis meses para o fim da estada terminou e prolongou-se – nem por sombras Rainer e Maren o deixariam partir – e, pouco a pouco, à medida que o alemão de Samuel foi melhorando, foi partilhando a sua história.
Sem contar aos pais, disse o rapaz, aos 13 anos fugiu da Eritreia para a Etiópia e depois para o Sudão, porque os militares eritreus estavam a obrigar os jovens a combater. Tinha ouvido histórias de crianças soldado fisicamente abusadas, mal alimentadas e a quem pagavam pouco ou nada.
Quando chegou ao Sudão teve de telefonar para casa e pedir dinheiro aos pais porque precisava de pagar a traficantes para o fazerem sair do país. Transportado em camiões de caixa aberta pelo deserto do Sara, seguiu em direção à Líbia, após o que esperava chegar à Europa, e viu outros refugiados caírem e serem abandonados para morrer.
Tendo por fim contado a sua história e sentindo-se seguro na sua nova casa, Samuel começou a mudar. Estava mais descontraído, ria-se. Os filhos de Rainer e Maren consideram-no hoje um irmão e estão sempre disponíveis para ele.
Atualmente tem 21 anos. Todo o trabalho árduo de criar uma vida e de aceitar a ajuda da família de acolhimento alemã compensou. Ainda vive com os Koch e tem autorização de residência permanente na Alemanha, o diploma do ensino secundário, carta de condução e um trabalho como aprendiz de técnico de mecatrónica automóvel. Está a apender a instalar componentes e a manter e a fazer a manutenção e reparar carros.
Ao olhar para trás, os Koch atribuem o desfecho positivo à confiança de que o amor incondicional e a abertura eram o caminho certo.
Um Novo Lar, Uma Segunda Família
Era início de março de 2022 e em Gex, uma pitoresca localidade francesa junto à fronteira com a Suíça, Maxim Artamonov via com um horror crescente as notícias sobre a invasão russa da Ucrânia.
Cidadão suíço desde 1992 mas criado em Moscovo, o homem de 52 anos, secretário-geral de uma associação comercial sem fins lucrativos, estava envergonhado e zangado. O que Putin descrevia como «operação militar especial» mais não era do que uma guerra brutal e sem fundamento. Mais de um milhão de ucranianos já tinha fugido para salvar a vida.
Tenho de fazer alguma coisa, pensou. Tenho de ajudar.
Para Maxim, não era justo ter uma casa com quatro quartos e duas casas de banho só para ele. A mulher, Kemlin Furley, representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), estava estacionada a cerca de 4 mil quilómetros, em Tbilisi, na Geórgia, e os dois filhos viviam em Londres. Os pensamentos dirigiram-se a Tatiana Halchanskya, uma simpática ucraniana de 60 anos que tinha tomado conta dos seus rapazes em 2010, quando o trabalho de Kemlin para o ACNUR levou a família para Moscovo. Ao longo dos anos mantiveram contacto com Tatiana e Maxim sabia que tinha regressado à Ucrânia – e que estava aterrorizada. A vida com o marido, na sua casa com um belo jardim cheio de flores, tinha sido abalada pela guerra.
A irmã de Tatiana, Liidia Cherkasova, ainda estava na Rússia, mas tentava chegar à Ucrânia para se juntar ao marido e ao filho. A sua casa ficava no Sudeste, perto da estação nuclear de Zaporizhzhia (que mais tarde viria a ser tomada pelas forças russas).
Depois de falar com Kemlin, Maxim decidiu oferecer às irmãs um local seguro para morar se o quisessem.
Assim, na primeira semana de março, Maxim enviou uma mensagem por WhatsApp a Tatiana e a Liidia. «Lamento tanto», escreveu. «Sinto vergonha de ser russo. E quero dar-vos abrigo.»
Primeiro Maxim precisava de arranjar bilhetes de avião para que Liidia pudesse sair da Rússia. Por causa das sanções contra o país, ela tinha de ir de Moscovo para Casablanca e daí para Genebra. Maxim foi buscá-la ao aeroporto no dia 14 de março e fez com ela a viagem de 18 quilómetros até Gex.
«Agora está em casa pelo tempo que for preciso», declarou. Tão gentil como a irmã, Liidia estava grata mas preocupada com o marido, que tinha apenas um pulmão, e com o filho.
Na mesma altura, o marido de Tatiana levava-a numa perigosa viagem de 600 quilómetros da sua casa, em Kupiansk, no leste da Ucrânia, até Kyiv, onde se juntaram à nora, Yunna Halchanskya, de 32 anos, e ao neto pequeno, Herman.
Juntos, continuaram na direção da fronteira com a Polónia, onde as mulheres e a criança se despediram do marido de Tatiana: ele ficaria para trás, com o filho, para combater. O trio deu início a uma série de viagens de comboio ao longo de mais de 1900 quilómetros, ao cabo das quais chegaram a Gex, no dia a seguir à chegada de Liidia, exaustos e aliviados por estarem a salvo.
Para Maxim, não houve dúvidas na decisão. Estas famílias enfrentavam uma guerra e ele não podia ignorá-lo. Instalou as irmãs nos quartos na casa principal, enquanto Yunna e Herman ocuparam o apartamento por cima da garagem.
O menino fez 4 anos poucas semanas após a chegada da família a Gex e começou a frequentar o jardim-de-infância – numa nova língua, o francês. As três mulheres arranjaram trabalho nas limpezas, a fazer pinturas e na jardinagem para conseguirem enviar dinheiro para casa e pagar alguma coisa ao seu anfitrião. Nas palavras de Tatiana: «O trabalho ajuda-nos a abstrair do que se passa no nosso país, com os nossos homens, com as nossas casas.»
Quando não estão a trabalhar, as mulheres dedicam-se a embelezar o jardim de Maxim. Nas redondezas, apanham cerejas, maçãs e avelãs e fazem doce, strudels e pão. Às refeições falam dos seus receios e contam a Maxim do que mais têm saudades em casa.
Maxim deu-lhes um cartão de crédito para que pudessem comprar comida e outros bens de primeira necessidade enquanto esperavam que as autoridades francesas processassem os pedidos de asilo. Ensinou mesmo Yunna a conduzir um carro com mudanças manuais, para que ela o pudesse levar para as invulgares tarefas de que as mulheres se ocupavam. Tatiana resume: «Maxim é o nosso anjo-da-guarda!»
«Tornámo-nos uma família unida por causa da guerra», diz Maxim. «E permaneceremos uma família, onde quer que estejamos.»
A quem esteja a considerar acolher refugiados, diz que é importante que a decisão se baseie em generosidade, além do sentido de dever. «Dito de um modo simples, é preciso ter o coração aberto. E eu tenho beneficiado muito da presença deles, da sua ajuda e amizade.»
Em junho, o marido de Yunna teve autorização do governo ucraniano para ir a Gex durante três semanas de licença. No fim do verão, após quase cinco meses fora, Yunna e Herman prepararam-se para regressar a Kyiv, esperando que o pior da guerra já tenha passado.
«É difícil deixar a nossa pequena bolha», disse a Maxim, enquanto o abraçava, à despedida no aeroporto. A sua mãe e a tia permanecem, uma vez que as cidades onde viviam ainda são demasiado perigosas para voltar. «Fomos muito privilegiados», resume Yunna. «Não é normal os refugiados terem anfitriões tão generosos.»
Maxim sorri. «Podes sempre regressar», diz. «Tens sempre aqui uma família e uma casa.»
Rukhshana Ahmadi e Fiona Harrower.
Maren e Rainer Koch com Samuel.
Maxim Artamonov.
Tatiana e Liidia.
Yunna e Herman.