Navegar no Passado

Navegar no Passado

A minha viagem numa escuna histórica 


Susan Nerberg DE CANADIAN GEOGRAPHIC TRAVEL 




DE PÉ AO LADO DO MASTRO PRINCIPAL do veleiro, eu e o meu colega de tripulação chegamos o mais alto que podemos. Com um aceno, agarramos a adriça – a corda usada para erguer a vela principal – e puxamos com força, colocando o nosso peso contra o vento. «Oh!»

Mesmo quando os nossos joelhos estão quase a bater no convés, dois dos meus colegas marinheiros – ao todo somos vinte passageiros neste cruzeiro de três dias – entram em ação agarrando a corda na sua vez. «Iça!»

E assim vamos, ora uns ora outros: «Oh!» «Iça!» «Oh!» «Iça!» Lentamente, a vela principal ergue-se no mastro até adejar na brisa, acenando adeus ao porto de Camden, no estado do Maine, no leste dos Estados Unidos.

O capitão Garth Wells ergue o polegar na nossa direção, mas quando começamos a procurar um local confortável ao sol para descontrair Brent, o imediato, abana a cabeça: «Vela de proa!», grita. Ainda não acabámos o nosso trabalho: temos de içar a vela número dois, no mastro à frente da vela principal. Por sorte, é um pouco mais pequena.

Enquanto a Lewis R. French, a nossa escuna de dois mastros de 30 metros navega para a cintilante baía Penobscot, a rede de telefone móvel desliga-se. «Lá se vai a ligação», diz um dos meus colegas passageiros, um homem do Arkansas nos seus cinquentas, enquanto guarda o telemóvel com um suspiro. É difícil dizer se está frustrado ou aliviado por deixar de ter acesso às redes sociais. Agora, os únicos comprimentos de onda ao nosso dispor estão debaixo dos nossos pés.


À medida que as casas de tábuas brancas e os aprumados jardins de Camden, com hidrângeas do tamanho de macieiras, se dissolvem na paisagem, deixamos para trás outras conveniências modernas. Construída em 1871, a Lewis R. French foi designada património histórico pelo Serviço Nacional de Parques dos Estados Unidos em 1991. Sendo a escuna mais antiga da América, a embarcação opera basicamente como no século xix. Não tem motores elétricos ou sequer um guincho para içar os seus 280 metros quadrados de velas e levantar a âncora de 77 quilos. Não há frigorífico – a nossa comida e a cerveja são mantidas frias em caixas de gelo no convés.


A Lewis R. French é uma máquina do tempo que me liga, e aos outros passageiros, aos ritmos de séculos que já passaram. Sincroniza-nos com o vaivém da luz do dia, com frescos salpicos marítimos, mastros que rangem e estrelas cintilantes.


O andamento é suficientemente descontraído para ajudar a esquecer a relutância – não é bem medo – que tenho pelo mar. Sou mulher de terra, nascida e criada na floresta boreal da Suécia, e sempre preferi o cheiro do ar salpicado de sal a partir de terra firme do que passar tempo nas, ou sobre as, ondas.

Quando o capitão Wells explicou que o barco era feito para cruzar nas águas relativamente calmas mais próximas da costa, levando carga de porto em porto em vez de atravessar o oceano aberto, senti-me aliviada. «Pensamos nela como um semirreboque que carrega tudo, desde madeira a peixe e árvores de Natal», diz. Andar num windjammer, como são conhecidos estes barcos tradicionais, ao longo da costa do Maine, é como navegar com rodinhas a ajudar.


A BRISA DO FIM DO VERÃO FAZ-NOS avançar e em breve a ondulação embala os passageiros para um estado de relaxamento. A tripulação de quatro pessoas, no entanto, não descansa. O imediato Brent e o marinheiro Oona enrolam cuidadosamente os cabos para ninguém tropeçar neles – isto, aprendo, chama-se «dobrar um cabo» (neste viagem estou a adicionar muito jargão marítimo ao meu vocabulário). Na cozinha, em baixo, Derek, o cozinheiro da embarcação, está prestes a tornar-se um herói aos nossos olhos, pois cozeu pão e fez sopa de batata e alho-francês num forno de lenha.


O capitão Wells, segurando a roda do leme, vigia o horizonte. Uma carta náutica presa com uma lupa está aberta ao seu lado. Cresceu a navegar, e, depois de trabalhar como imediato durante cinco temporadas na French, comprou-a em 2004 com a sua mulher, Jenny Tobin.

Pergunto aonde vamos. «Naquela direção», responde, apontando para Vinalhaven, uma das maiores das perto de 2000 ilhas ao largo da baía de Penobscot. 

Não é mais específico do que isto: «Acho que nunca acabei por chegar onde tinha planeado ir quando saio pela manhã», diz. «Nunca se sabe para onde o vento nos leva.»

Isso é uma das coisas que tornam esta viagem fantástica. Para muitos de nós, a vida no dia a dia é demasiado planeada, desde reuniões aos jantares com amigos, passando pelas idas ao ginásio. Mesmo um encontro «espontâneo» com um amigo para beber uma cerveja pode não acontecer a menos que esteja agendado. Aqui, sobre as águas, vamos literalmente com a corrente.

Isso não quer dizer que os dispositivos modernos foram de todo banidos a bordo. O capitão Wells tem um GPS e um radar em caso de emergência, bem como um rádio de VHF para comunicar com outros barcos.


E, embora se peça aos passageiros que não façam chamadas dos seus telemóveis (alguns conseguem uns resquícios de rede), é permitido usá-los para tirar fotografias. Há até um gerador para alimentar luzes nos nossos aposentos e nas duas casas de banho do navio, uma das quais tem duche de água doce.


A Lewis R. French também tem um escaler, que fica pendurado na popa. Equipado com um motor, pode empurrar a escuna em tempo calmo, um pouco como um rebocador invertido. Mas hoje não precisamos de qualquer ajuda – graças à brisa constante, estamos a fazer bons progressos na rota de Fox Island, que separa as ilhas de Vinalhaven e North Haven. Os pescadores que vivem em Vinalhaven são descendentes das tripulações do século xix que fizeram da baía Penobscot uma das primeiras zonas comerciais de lagosta do Maine.


Largamos âncora mesmo ao largo da minúscula ilha de Hells Half Acre, perto de duas ilhas maiores chamadas Devil Island (Ilha do Diabo) e The Shivers (Arrepios). Prefiro não imaginar como mereceram os nomes, focando-me apenas na promessa do jantar de lagosta à discrição que nos espera em terra.

Hells Half Acre, descubro quando somos levados para terra num dos barcos a remos do Lewis R. French, tem um nome enganador. É mais como o paraíso. A praia onde desembarcamos está enfeitada de algas castanhas do género Fucus, que se podem encontrar ao longo de toda a costa do Atlântico Norte. Mais acima, subimos para uma placa de granito que foi moldada pela maré para fazer uma plataforma que serve de terraço e é perfeita para se estar ou jogar frisbee. 

Derek faz cachorros-quentes, hambúrgueres e espetadas de vegetais no churrasco num grelhador portátil e distribui latas de Moxie, o refrigerante oficial do estado. Sabe a salsaparrilha misturada com um pouco de menta, pastilha elástica e biter – dou um golo e concluo que provavelmente temos de ser dali para a apreciar. O capitão Wells e Oona colocam lagosta e espigas de milho num caldeirão cheio de água do mar a ferver. Quando o marisco fica vermelho como o pôr-do-sol, é colocado numa cama de algas. Juntamo-nos à volta, sentamo-nos na praia e atacamos o manjar.


SE ALGUÉM PENSA QUE COMEU demasiado em Hells Half Acre, onde ancorámos para passar a noite, a manhã seguinte dá-nos a oportunidade perfeita para queimar as calorias: prepararmo-nos para largar velas de novo exige bastante energia muscular – na ausência de um guincho, a âncora tem de ser puxada manualmente. Quando pedem voluntários levanto a mão, juntamente com mais três pessoas. Depois de me empanturrar no dia anterior não só em lagosta como também no pão ázimo de Derek barrado com manteiga, sinto que preciso do exercício.

Assumo o meu lugar na manivela de içar, que se move como um baloiço. Com dois de nós em cada ponta, começamos a empurrar à vez, para cima e para baixo. É um trabalho pesado. O imediato Brent explica que a âncora está alojada na lama, o que faz mais resistência.

«Se fica sobre a rocha, que está marcada na carta náutica, a âncora pode ser arrastada no fundo, fazendo o barco andar à deriva», diz. A areia não é tão firme como a lama, e a âncora pode soltar-se se houver ondas, outra causa de deriva.


À medida que a âncora se ergue lentamente, depressa descobrimos que a lama dá trabalho a sério aos tríceps. Temos os braços a latejar quando um colega dos que puxam começa a cantar para nos ajudar a manter o ritmo. Em pouco tempo, compomos a letra especificamente para a tarefa em mãos. «Cranky, Cranky, who is cranky?» (Cranky = rabugento, crank = manivela), canto com Jessica, uma rapariga da zona que opera do meu lado da manivela. Os dois homens do outro lado respondem: «Rabugento, rabugento, eu não estou!»

Com a âncora recolhida, em breve alcançamos a velocidade de 8 nós (15 quilómetros por hora), cruzando-nos com mais oito barcos da Main Windjammer Association. 

Do meu poleiro à frente do navio, onde o mastro de proa se estende na horizontal a partir do casco, consigo ver os vestígios de uma pedreira de granito que outrora foi um dos principais motores económicos da zona da baía de Penobscot. Os blocos de granito cortado ainda jazem nas costas rochosas. 

Como estava localizado próximo da água, tornando-o fácil de transportar por barco, o granito esculpido dos promontórios e ilhas do Maine foi usado para construir famosos símbolos dos Estados Unidos, incluindo o Monumento de Washington, a Biblioteca Carnegie e o Edifício da Bolsa de Nova Iorque. 

O vento frio ganha força, por isso vou para o convés inferior para aquecer. Na cozinha, Derek está de pé a trabalhar, ou a tentar, com os pés bem afastados para manter o equilíbrio devido à ondulação enquanto prepara o nosso jantar de truta-de-cabeça-de-aço com funcho braseado na frigideira e arroz basmati fumado. 

Quando digo a Derek que vi os blocos de granito, ele acena. «A escuna levava até 30 toneladas de carga, incluindo granito», diz. Abrindo um alçapão no chão, Derek aponta para dúzias de barras com meio metro de comprimento. «Mas estas são feitas de chumbo», diz. «São lastro. Sem elas virávamos.» 

Sabe bem saber que não vamos virar. Tão bem, na verdade, que finalmente arranjo coragem para perguntar ao capitão Wells se posso pilotar o barco. Sabendo que não causarei muitos estragos se cometer algum erro – o capitão está mesmo ao meu lado – pego na roda do leme, de bronze polido e com cerca de um metro de diâmetro, por duas das pegas. 


Ainda assim, estou nervosa. Sentindo a minha hesitação, Wells diz-me que o barco não irá virar ao mínimo movimento. Não há direção assistida. «São precisos movimentos grandes, um quarto de volta, para mover o leme e o barco», explica. Mostra-me para onde vamos, traçando na carta náutica uma linha até Gilkey Harbor, cerca de 12 quilómetros a norte de Camden. Depois aponta para o intervalo entre duas massas de terra à distância. 

Marco como referência a colina mais alta que vejo, na massa continental mais longe à distância. A Lewis R. French vai andando à velocidade do vento. Tudo o que faço é ajustá-la na direção certa. Estou a navegar à moda antiga, e é então que a sinto. A minha relutância terrícola em ir para o mar finalmente desfaz-se, como a esteira que desaparece atrás de nós. Agora sou marinheira, e o meu barco chegou. 










A Lewis R. French, construída em 1871, hoje ainda navega na baía de Penobscot, no Maine. 


A Lewis R. French durante uma paragem ao longo da costa do Maine.



O imediato Brent e os passageiros içam as velas. 



A lagosta é servida em Hells Half Acre.



Outro dos barcos da frota da Maine Windjammer Association. 

O capitão Wells ao leme da Lewis R. French..





Share by: