UM AMOR MAIS FORTE QUE A MORTE

A 7 de outubro de 2023, após o massacre do Hamas, Ben e Gali assistem à morte um do outro no deserto do Neguev israelita. Milagrosamente sobreviveram, mas cada um teve de amputar a perna direita. Uma experiência terrível que o casal transformou em força.


Nicolas Delesalle

EXCERTO DE Paris Match



O sol põe-se. Tudo está em silêncio, exceto o som de botas ao longe, perto do Líbano. Hoje, pela primeira vez, caíram rockets perto, a norte da bonita casa no moderno kibutz de Ramot Menashe, a sul de Haifa. O Hezbollah responde com todos os meios ao dispor aos ataques do exército israelita. Ben e Gali servem café. Ele tem 31 anos e ela 28. Sentam-se no seu pequeno terraço, abrigado por um toldo, à volta de uma mesa baixa. O jardim é perfumado com flores. A relva está cortada. Gali olha para Ben. Ben olha para Gali. Os olhos dela são tão negros como os de Ben são azuis.

Terminam as frases um do outro. Conhecem-se desde 2016. Durante muito tempo, ele foi jogador de futebol semiprofissional na segunda divisão. Ela tem uma licenciatura em Arquitetura. Estão muito apaixonados. A ambos falta a perna direita.

Em outubro de 2023, pelo aniversário de Ben, o casal decide ir ao festival Tribo de Nova. Os namorados compram os bilhetes dois dias antes da festa e vão até lá com o irmão de Ben e alguns amigos. Planeiam encontrar-se com uma amiga de infância, Shani, que trabalha na Novagreeting, para receber os festivaleiros. Chegam por volta da 01h00, cumprimentam Shani à entrada e montam a tenda. Tencionam dançar e ficar até à tarde seguinte. Gali e Ben vivem no norte do país e a rave situa-se a apenas 5 quilómetros da Faixa de Gaza. O casal reúne-se com os amigos na tenda central, azul e cor-de-rosa: cerca de quarenta pessoas no total. Vinte e seis delas seriam assassinadas durante o dia. Naquele momento, o ambiente é mágico, a música poderosa. As vibrações do baixo penetram nos corpos nus, que comungam numa espécie de transe no meio do deserto. 

«Foi a maior e mais bela rave de Israel», recorda Gali, cuja prótese está escondida pelas calças brancas. Os namorados não consomem drogas, ao contrário de muitos à sua volta. Mas dançam, dançam e dançam. Às 06h00, Shani, que acabou o turno, vai ter com eles. A pequena trupe está prestes a regressar às tendas para descansar quando os primeiros rockets caem do céu. São 06h29. Os israelitas estão habituados a que sejam lançados rockets a partir de Gaza. Mas desta vez os jovens apercebem-se de que algo de anormal está a acontecer diante dos seus olhos: há mais rockets do que o habitual. O Hamas vai disparar 4 mil durante o dia. 

O Iron Dome, o sistema antimíssil de Israel, entra em ação. Num instante, a atmosfera festiva da rave evapora-se: as pessoas entram em pânico, correm, algumas atiram-se para o chão. 

No terraço da sua casa, Gali acende um cigarro enquanto acaricia o coto da coxa: «Passámos da alegria ao inferno num instante. Um filme de terror.» Os namorados e os amigos decidem abandonar a festa sem demora. Regressam aos seus veículos. O grupo divide-se em dois. Num carro, o irmão e os seus amigos, noutro, Ben, Gali e Shani. 


O sol nasce e os carros entram no deserto, em fila indiana, sob o brilho alaranjado da madrugada. O irmão de Ben tem cinco minutos de avanço. Sai finalmente da estrada de terra batida e dirige-se para norte pela estrada 232, que serpenteia entre quintas e o leito de rios secos. «Estávamos a falar ao telemóvel com o meu irmão e, de repente, ouvimos gritos e tiros», conta Ben. «O meu irmão disse-me que estavam a ser atacados, que não devíamos ir na mesma direção que eles.» O carro do irmão foi atingido por cinco balas perto da cidade de Netivot. Felizmente, ninguém ficou ferido e o carro continuou a circular durante 5 quilómetros até se avariar. Se tivesse parado imediatamente, os ocupantes teriam sido massacrados. O irmão e os amigos esconderam-se numa cave com mais dez pessoas. Foram libertados por uma unidade do exército mais tarde nessa noite. 


Ben, Gali e Shani tinham acabado de virar na estrada 232, mas seguem o conselho do irmão e voltam para trás. Dirigiam-se para sul quando, na berma da estrada, um polícia lhes fez sinal para pararem em frente a um miklat, um dos pequenos abrigos de betão armado que pontuam o território israelita. «Quando entrámos no abrigo», diz Gali, «sentimo-nos seguros. Havia um polícia, estávamos protegidos pelo betão. Estava tudo bem». Todos ignoram que a ameaça não vem apenas do céu. Mesmo Ben e Gali, avisados pelo irmão de Ben, não se apercebem de que cerca de 1500 homens do Hamas estão a semear a morte no seu rasto. 

No abrigo, uma dúzia de pessoas espera que a tempestade de aço acabe. Lá fora, o polícia manda parar muitos veículos e não tardam a ser cerca de quarenta os que se amontoam no miklat. Passados alguns minutos, ouvem-se os primeiros disparos de armas automáticas. Primeiro ao longe, depois cada vez mais perto. Também se ouvem granadas a explodir, que fazem vibrar as paredes. Os combatentes do Hamas estão quase a chegar. Trocam tiros com o polícia que está à entrada. No miklat, algumas pessoas entram em pânico, outras perguntam-se se será o exército a chegar. O caos é total. Alguns telefonam à família para lhes dizer palavras de amor. Shani contacta com a mãe, explicando-lhe que está em segurança. Gali não consegue falar com a dela. São 07h00. O polícia está morto. Os homens do Hamas invadem o abrigo. Os blocos de betão foram concebidos para resistir aos rockets. Não têm portas. Ao ar livre, as figuras da entrada caem, enquanto outras se aglomeram nas traseiras. Ben e Gali estão colados um ao outro. Prometem amar-se e despedem-se. 

De repente, Ben vê a ponta de uma arma a sair da parede de proteção e a cuspir fogo. Detonações, gritos. Ao mesmo tempo, apercebe-se de uma granada a rolar. Quatro serão lançadas pelos terroristas. Três explodem. Ben e Gali perdem a consciência simultaneamente. São ambos atingidos na perna direita e têm marcas de estilhaços em todo o corpo. Acordam quinze minutos depois. Shani desapareceu. Todos os que estavam no abrigo estão mortos ou feridos. Os que conseguiram sair já tinham partido. Mais tarde, ao falarem com os sobreviventes, Ben e Gali juntam os factos. Vinte e seis pessoas morreram no abrigo. Treze sobreviveram. Shani não foi ferida pela granada. Ao telemóvel, a mãe implorou-lhe que fugisse. Ela pensava que Ben e Gali tinham morrido. Os terroristas ainda estavam lá fora. Foi atingida três vezes na perna, mas conseguiu entrar no carro. Conduziu de volta ao local da rave. Um paramédico fez-lhe um torniquete e depois escondeu-se numa das ambulâncias da organização. Os terroristas chegaram ao local e dispararam granadas contra a ambulância. As dezoito pessoas presentes foram mortas, entre as quais Shani. No abrigo, Ben telefona ao irmão, dizendo-lhe que perdeu muito sangue. Ficou sem a perna e a de Gali ainda está presa por pedaços de carne. O irmão explica-lhe como fazer um torniquete, mas Ben já não tem forças. 


No seu terraço, Ben levanta-se. De calções, a prótese estica-se e ele estende a mão para mostrar ao telemóvel um vídeo da quarta granada que não explodiu e uma imagem da sua perna esmagada, depois volta a sentar-se e enrola um cigarro de haxixe. «É bom para as dores fantasma», suspira. 

No abrigo, Gali tenta levantar-se, mas apercebe-se de que está gravemente ferida: «Não tenho perna!» Ben tenta acalmá-la: «Poupa as tuas forças, não grites, se o nosso destino é morrer aqui, pelo menos estamos juntos. Amo-te.» No emaranhado de corpos, com o cheiro a pólvora e a sangue, os amantes aceitam o seu destino: compreendem que está tudo acabado para eles.


O tempo arrasta-se, Ben e Gali esperam pelo fim, enquanto lá fora o tiroteio redobra. De repente, um homem de uniforme entra no miklat: é um agente das forças especiais israelitas. Está acompanhado por um civil. Dois outros agentes chegam como reforços. Gali agarra um deles pelos pés e grita: «Salva-nos!» Primeiro, ele tira Gali e coloca-a no banco de trás de um carro civil. «Leva o Ben também!», pede Gali. O agente sai para o abrigo e regressa com outro ferido. Um homem. Mas não é Ben. «Parece quase burlesco quando o conto agora, mas no carro pensei que Ben estava morto e que o polícia tinha escolhido salvar outra pessoa.» O carro acelera em direção ao hospital, onde Gali será amputada no Departamento de Cirurgia de Emergência.


Ben espera um pouco pelo regresso do agente. Quando chega a sua vez de ser retirado do abrigo, deixam-no na berma da estrada. Repara no corpo do polícia que os mandou parar para os pôr em segurança. Os terroristas também jazem no chão. Por fim, vê uma jovem deitada contra o abrigo, de costas para ele. Está vestida com calções e um pequeno top pretos. Exatamente como Gali. Está morta. «Não conseguia ver a cara dela, por isso pensei que era Gali, que estava morta e o agente a tinha posto ali.» O polícia para o carro de um civil para evacuar Ben. O nome do condutor é Michael.


 Também ele é da rave. Juntamente com o polícia, tentam metê-lo no carro, mas Ben recusa-se: «Eu queria que eles levassem o corpo de Gali comigo. Disseram que sim e voltaram com outra mulher com uma ferida no estômago. Era óbvio que não era Gali.» O carro arranca. Na rotunda do Kibbutz Sa’ad, no fim da estrada sangrenta, um paramédico voluntário está de vigia, com a arma na mão, ao lado de um polícia. O seu nome é Adam. Ainda há terroristas por todo o lado. Ben e a jovem com uma ferida no estômago estão inconscientes. Michael pede ao voluntário que o ajude. «Impossível», responde o enfermeiro. «Há mais terroristas a caminho.» Michael insiste: «Eles estão a morrer no meu carro! Vai vê-los!» 


Adam suspira e corre para ir buscar o estojo de primeiros socorros. Procura o pulso da jovem, mas não o encontra. Está morta. Ben ainda respira, mas está a esvair-se em sangue. Adam aplica um torniquete. Aperta a ligadura à volta da ferida. A dor acorda Ben. Ele grita. «Estou a salvar-te a vida», responde-lhe Adam para o silenciar. De um fôlego, Ben sussurra que a namorada está morta. Adam pensa que ele está a falar da rapariga que acabou de examinar, que agiu demasiado tarde. Começa a chorar e depois ajuda Ben a entrar numa ambulância estacionada mais longe. É a última a sair do local. A área será completamente bloqueada depois dele sair, e também atacada. São agora 09h00. Não haverá mais veículos a sair da zona até às 16h00.


No Centro Médico Soroka de Beer- Sheva, Ben saiu da ambulância meio inconsciente e dezenas de pessoas atiraram-se para cima da sua maca, brandindo fotografias dos seus entes queridos desaparecidos, que mostram nos telemóveis: «Viste esta pessoa?» «Comecei a chorar», conta, « porque não sabia o que fazer». É imediatamente amputado. 

Na sala de recobro, as macas estão alinhadas atrás de cortinas. Não há nomes nas camas. Ninguém sabe quem é quem. Gali lamenta: «Eu dizia a mim mesma que tinha partido com ele e voltado sem ele, que era horrível. Ele estava morto e eu não.» 


Amputada e em lágrimas, Gali foi levada para outra sala maior, com várias camas. São 23h00 e 1200 pessoas foram mortas em Israel nesse dia. De repente, uma luz ofuscante inunda a noite em que os namorados de Nova estão imersos. Gali vira a cabeça: «E ali, a duas camas de mim, vejo o Ben! Vivo!» Exaustos e a chorar, os amantes acenam e sorriem um para o outro e depois desmaiam. Têm o cérebro e o coração no limite. 


Acordam quando as respetivas famílias chegam. «Dezenas de pessoas abriram as cortinas para ver se era o seu ente querido que estava ali. Foi a minha irmã quem me encontrou. Eu não conseguia falar», confessa Gali. O pai de Ben, um fervoroso apoiante do seu filho jogador de futebol que nunca perdeu um dos seus jogos, não conseguiu encontrar uma palavra para dizer quando viu que o filho tinha sido amputado. «Perguntou-me: “Estás bem?” Mostrei-lhe a perna e chorei. Ele quase desmaiou.» 


A reabilitação de Gali é mais difícil e prolongada do que a de Ben. Tem uma infeção que precisa de ser tratada. No dia seguinte ao atentado, são transferidos para um hospital no norte do país, mais perto das suas famílias. «Desde então, estamos sempre juntos.» 

Gali foi submetida a catorze operações, incluindo quatro ao braço devido a ferimentos de estilhaços. Ben foi submetido a três operações. Um mês e meio depois, já não corriam perigo e começaram o longo processo de reabilitação no centro médico de Tel-HaShomer. «Pensámos que íamos passar o resto das nossas vidas numa cadeira de rodas», refere Ben. 

Os amputados feridos visitam-nos. «Um rapaz da minha idade com uma prótese disse-me que conseguia correr e até esquiar. Eu sorri. Foi a primeira vez em semanas.» 

A equipa de handifoot de Israel visita Ben. «Daqui a seis meses, há o Euro handifoot em Evian, França. Vais jogar connosco», afirma um homem. «Pensei: “Este gajo é maluco. Do que está a falar?” Afinal, joguei todos os jogos com eles.» 

Os namorados encontraram uma boa motivação para sarar as feridas. Decidiram casar-se, com a única condição de poderem andar e dançar. «Por isso, demos a nós próprios nove meses para lá chegar», sorri Gali. «A data do casamento estava sempre presente nas nossas mentes. Aprendemos a dançar devagar com as próteses durante a fisioterapia. E depois pensámos na nossa história. A granada que não explodiu, a última ambulância para Ben, o enfermeiro que, in extremis, fez um torniquete. Houve vários milagres. Por isso, é certo já não temos a perna direita mas, no fundo, são apenas pernas.» 


Ben e Gali sofrem das mesmas feridas físicas e mentais, entendem-se sem terem nada a dizer, lutam juntos contra os pesadelos, como verem-se cair sem parar, suores noturnos, dores fantasma. 


Ben tinha pedido Gali em casamento em Veneza, numa gôndola, na presença de um cantor de serenatas. Nove meses depois de 7 de outubro, o casamento realizou-se em Netanya. Shlomi Shabat, uma estrela local, prometeu que iria. Cumpriu a sua palavra. Gali queria casar-se ao som de uma das suas famosas músicas. 



Sempre ocupada, a melhor amiga de Gali, Shani, tinha-lhe pedido para casar numa quinta-feira, o único dia em que ela podia viajar. «Caso contrário, eu não vou!», brincou ela. Em sua memória, Gali e Ben casaram-se numa quinta-feira. Deixaram Telavive, que se tinha tornado demasiado agitada para eles. Gali dá conselhos nas redes sociais. Quanto a Ben, abriu uma empresa imobiliária. Dão conferências juntos e em breve vão fazer uma viagem ao México. Sonham com o fim da guerra e com o fim da lista das suas vítimas.