Apesar dos retoques incompreensíveis do bisturi, Uma Thurman continua a ser uma atriz com classe e uma beleza única. Abril é o mês dela pois nasceu em Boston a 29 de abril de 1970. Diz-se uma leitora compulsiva e a sua escritora favorita é Jane Austen, no entanto o livro que mais vezes leu, a sua obra favorita desde a infância, é Pipi das Meias Altas. Desde sempre teve um toque de classe que ao nível da beleza a distingue dos padrões de Hollywood.
Mário Augusto
Entrevistei-a pela primeira vez em 1990, a propósito do polémico Henry e June, tinha ela 20 anos, filme no qual contracena com Maria de Medeiros. Se anteriormente já me intrigava aquele ar misterioso, fiquei a gostar ainda mais dela depois dessa primeira conversa. É animada, inteligente, muito alta para uma mulher, com um olhar turquesa cativante, uma presença forte e ideias muito claras quanto ao competitivo universo cinematográfico por onde anda há mais de vinte e cinco anos. Tive, por isso, que desempoeirar umas velhas cassetes de vídeo que na altura gravei, compondo com esses registos este texto sobre uma das atrizes que admiro, muito embora me espantem algumas das opções que faz na gestão da carreira e me intrigue mais ainda porque não aceita as marcas e as rugas do tempo com tranquilidade, em vez de se render ao bisturi das plásticas que só baralham a tal classe que a distinguia com aquela beleza exótica que se tem perdido. Passaram-se dez anos entre a primeira e a segunda vez em que nos encontrámos.
Uma Thurman ficou-me debaixo de olho quando apareceu no já velho e ignorado filme de Terry Gillian A Fantástica Aventura do Barão Munchausen, uma produção de 1988 na qual ela enche o ecrã recriando a famosa imagem de Vénus na pintura de Botticelli. O filme foi um fracasso, mas a imagem dela, com uma beleza lânguida e uma sensualidade peculiar, marcaram, tal como no filme seguinte, Ligações Perigosas, de Stephen Frears. Nessa produção não ofuscou as estrelas Michele Pfeiffer e Glenn Close mas conquistou o seu espaço.
Não nos cruzámos durante anos. Voltei a entrevistá-la por altura da estreia do filme de ficção científica Gattaca, onde contracena com Ethan Hawke, ator com quem viria a casar pouco tempo depois da rodagem. Mais tarde, depois de a ter visto em Pulp Fiction, passei a estar atento a todos os seus novos filmes, sempre na tentativa de usufruir dos cronometrados minutinhos de conversa de entrevista. Poderia ter acontecido mais cedo, mas o reencontro só seria possível no lançamento de Kill Bill. De novo Tarantino, e ainda por cima com uma história sugerida pela própria protagonista. Para essas entrevistas de Kill Bill fui a um primeiro encontro em Nova Iorque. Alguns meses depois, para falarmos de Kill Bill 2, a viagem seria mais longa, doze horas de avião até Los Angeles.
Dessa vez eu levava a conversa na ponta da língua com as perguntas que sobraram do primeiro Kill Bill. Mas o tempo foi curto.
Sempre afável, sabia ter pela frente duas horas a ouvir jornalistas de todo o mundo que seguramente lhe iriam fazer perguntas mais ou menos idênticas. Assim, como terapia e distração, deparei com Uma Thurman de agulhas na mão, a tricotar malha, pedindo simpaticamente ao operador de câmara para apertar suficientemente o plano... de forma a que não se visse o que me pareceu ser um cachecol colorido, que ia crescendo à medida que os jornalistas entravam e saíam das entrevistas.
Ela exprime-se sempre com aparente sinceridade e gosta de dizer o que pensa nestes fugazes encontros com a imprensa. Havia, todavia, um tema tabu: as suas paixões da altura que andavam a ser esmiuçadas nas revistas de fait-divers e o casamento com Ethan Hawke que tinha acabado há menos de dois anos. Segundo a imprensa cor-de-rosa norte-americana, a separação ficou a dever-se a um deslize de infidelidade do marido. Logo eles... que foram apontados como um casal-modelo de Hollywood, a forma como se conheceram parece inspirada numa comédia romântica: encontraram-se pela primeira vez numa caixa Multibanco, a levantar dinheiro, e mais tarde fariam o tal filme juntos, Gattaca (1997), que fracassou na bilheteira mas acabou em casamento – e foi sobre o fim desse casamento que a assistente me avisou que não poderia perguntar nada. Não era também minha intenção vasculhar a vida familiar lá em casa.
Das outras vezes em que a encontrei já não apareceu a fazer tricot durante as entrevistas, mas o coprotagonista de um dos filmes, Luke Wilson, confidenciou-me que, durante as filmagens, ela quase obrigou todos a aprenderem a manejar as agulhas com fim terapêutico. Disse-me ele que estava tão treinada que terá feito casacos e cachecóis para toda a equipa...
Uma família sui generis
Nova Iorque é a sua cidade. Não que tenha nascido ou crescido por lá, mas porque chegou cedo, aos 16 anos, e com a firme convicção de se tornar atriz. Como a vontade era maior do que a quantidade de papéis que foi angariando, Uma Thurman foi servir às mesas de um restaurante para ganhar algum dinheiro para os estudos. Atrás do balcão estava um cozinheiro inglês um pouco mais velho do que ela, Gary Oldman, que também queria seguir a vida de ator. Viria a casar com ela pouco tempo depois, mas foi um matrimónio marcado por zangas e, ao que consta, mesmo por alguma violência. Como é óbvio, nunca tive coragem para lhe fazer perguntas sobre isso, mas é a própria a tomar a iniciativa de falar abertamente acerca do fim desse seu relacionamento: «Já foi há tanto tempo... Durou apenas dois anos, foi realmente uma atitude imatura e inconsciente da minha parte. Agora, quando penso nisso, é como se tivesse vivido numa nuvem. Eu era muito independente desde os 17 anos e todas as pessoas que me rodeavam tinham o dobro da minha idade.
Continuo a ter grande estima pelo Gary, mas realmente não devia ter casado com ele.»
Uma Thurman chegou a Nova Iorque deixando para trás a pequena
cidade de Amherst, no Massachusetts, onde cresceu numa família pouco vulgar para a América: a mãe, nascida na Suécia, abandonou a carreira de modelo para criar os quatro filhos depois de assentarem arraiais na América após um longo período de viagens pelo Tibete e pela Índia. O Dalai Lama era visita frequente em casa dos Thurman. O pai foi o primeiro norte-americano a ser aceite como monge indo-tibetano e até se reformar foi professor de Budismo na Universidade de Colúmbia. Esta ligação ao Tibete explica muita coisa na formação da atriz, desde logo o nome tão invulgar: Uma Karuna Thurman. «Uma» é proveniente de um deus hindu e significa «a melhor das bênçãos». Karuna é um dos sacerdotes sublimes do budismo. O mais vulgar, Thurman, é o nome de família do pai. Está assim explicado o bilhete de identidade.
Logo na primeira entrevista, fiz-lhe uma pergunta sobre esse ambiente de prática budista em que cresceu.
«É curioso perguntarem-me inúmeras vezes se acredito em Deus e se tenho uma religião ou se sou praticante da religião budista. Dou sempre uma resposta negativa. Não é, no entanto, um “não” no sentido totalmente negativo. Não vejo é um Deus com aquela atitude do Céu em oposição ao Inferno. Também não sou budista, embora sinta muito respeito pela fé e pelo rigor da prática de uma religião. Imagine-me mãe a tempo inteiro e atriz! Acha que me sobra tempo para uma entrega espiritual?!» (Risos.)
A ligação à família continua a ser muito forte, apesar de algumas discordâncias nos tempos da adolescência, em particular com os irmãos (um deles, embora não tão conhecido como a irmã, também é ator). «Claro que mantemos um grande contacto. Os meus irmãos são fantásticos comigo e continuam a dar-me muito apoio. As bases familiares são sempre fundamentais para o nosso bem-estar emocional.»
Da conversa a Pulp Fiction
Em 1994, Uma Thurman fez o filme que se transformaria num ícone da cultura pop. A dança com John Travolta em Pulp Fiction já faz parte da história recente do cinema. Dois anos antes de rodar o filme tinha sido apresentada a Quentin Tarantino numa festa. Nunca mais se esqueceu desse momento: «Quando fomos apresentados, acabámos por ficar a falar durante três horas! Ele não para, atropela-se nas próprias ideias, pensa mais rápido do que verbaliza. Eu também adoro falar e comunicar. Ele é uma pessoa com ideias incríveis e por isso ficámos desde logo amigos. Algum tempo depois ele falou-me de um projeto que estava a desenvolver, que viria a ser Pulp Fiction, e convidou-me para participar.»
Na rodagem do filme, que ultrapassaria as melhores expectativas, surgiu a ideia para um outro filme, no decorrer das sempre longas conversas que Uma ia mantendo com Tarantino. «É verdade. Sugeri-o numa festa que a produção deu à equipa técnica de Pulp Fiction, ou seja, dez anos antes de o filme estar concluído. Estávamos a conversar, ele a discorrer sobre as grandes personagens femininas do film noir, e eu falei-lhe de uma ideia que trazia comigo há já algum tempo: uma assassina que era vítima do seu próprio líder.
Começámos a fantasiar sobre essa hipótese e logo ali surgiu a ideia do massacre durante o casamento. Ele sobrevivia e começava a preparar a vingança. E o título do filme veio logo a seguir... Eu sugeri que o líder dos assassinos se chamasse Bill e o Quentin atalhou logo: “Tem de se chamar Kill Bill. Ficou tão entusiasmado que dias depois já tinha escrito as primeiras oito páginas do argumento. Só nos encontrámos muito depois... acho que passaram, talvez, uns sete anos. Eu perguntei-lhe pela nossa história e ele, que não tinha pegado mais no projeto, tentou escrever o guião para estar concluído no meu dia de anos.»
Outros projetos da atriz e o êxito fulgurante da carreira de Tarantino foram adiando a concretização deste projeto mas ela estava determinada a ser a protagonista, ao ponto de a rodagem ter sido adiada devido à sua gravidez. «Havia uma razão especial. Eu não podia permitir que outra atriz assegurasse o papel de uma personagem na qual eu já tinha investido tanta energia e tanto trabalho. Era como se aquela personagem já fizesse parte da minha vida, há muito, muito tempo. Havia ali anos de trabalho! Por outro lado, eu queria ter outro filho. O projeto foi sendo adiado, eu engravidei e acabaram por ter que atrasar as filmagens até que o bebé nascesse. Eu sabia que não seria fácil. O guião obrigava-me a superar uns quantos desafios. Estive sempre muito animada, pois nunca tinha feito um filme como esse. A fase de treino físico foi duríssima, foi um treino muito intenso. Antes de começar, estava num péssimo estado físico, não só pelos quilos a mais que ganhei com a gravidez, mas também devido a um certo esgotamento provocado pelas noitadas a que um bebé nos obriga nos primeiros tempos após o nascimento. Houve momentos em que ponderei desistir, mas acabei por encarar a aprendizagem como um recomeço. Passo a passo, quis provar a mim mesma que era capaz. Foi um processo muito demorado, de grande entrega pessoal – tive de aprender a manejar espadas, tive treino de artes marciais –, mas em que tudo decorreu com naturalidade.»
Aqui se percebe a importância de uma longa e aturada preparação para se alcançar um bom desempenho final. Entre o nascimento do filho e a rodagem do filme, Uma Thurman perdeu cerca de 15 quilos: «Com o nascimento do bebé perdi logo 5 quilos. Depois, com dieta e muito exercício, reduzi mais 10. Sinceramente, não foi nada difícil perder peso com tanto treino e com práticas tão diversificadas: sabres, esgrima, artes marciais... Cinco dias por semana, ao longo de três meses, entreguei-me totalmente àquele treino [risos] e doía-me tudo! Tive vários nutricionistas a prepararem-me as dietas e diversos treinadores. Por mim, fazia mais ioga, mas eles preferiam que eu levantasse pesos! E não foi uma dieta normal pois tinha que comer bem porque estava a amamentar… Só sei que consegui.»
O que é certo é que Kill Bill, tal como já tinha sucedido com Pulp Fiction, marcou-lhe a carreira: «De alguma forma, tudo o que fiz na minha carreira contribuiu para que mudasse um pouco. Cada novo papel levou-me a descobrir coisas novas acerca de mim. Acabo por me surpreender... até porque sinto sempre alguma insegurança no arranque e na definição das personagens.»
Fala assim do seu trabalho, mas na última entrevista confessou-me que já ponderou abandonar a carreira mais do que uma vez para se dedicar inteiramente ao papel de mãe. «É verdade, já pensei abandonar a carreira depois do nascimento da minha filha. Não sabia como conciliar as coisas, ser mãe e atriz em simultâneo. Até porque quis dar sempre aos meus filhos todo o tempo de que precisam. Percebi rapidamente que não podia levar o mesmo tipo de vida. Demorei algum tempo a reorganizar a minha vida até conseguir ser mãe, atriz e mulher.»
Tomada a importante decisão, acompanhou os três filhos no seu crescimento, hoje todos jovens adultos que seguem as pisadas dos pais na profissão. A atriz tem mantido uma carreira constante, mas longe da notoriedade que conseguiu com os filmes de Tarantino. Entre a ação, a comédia e o drama, vai estreando pelo menos um filme, ou uma série, por ano. «Gosto de sentir todos os géneros de filme em que me envolvo. Quando se começa a rodar um novo projeto, começa tudo de novo. No fundo, o que esta profissão tem de mágico é que estamos sempre a reinventar-nos. Eu gosto particularmente de comédia porque assenta na ironia e na diversidade dos sentidos. Tudo o que fiz na minha carreira foi moldando a minha maneira de ser e de encarar a vida e as situações. Cada novo papel obrigou-me descobrir coisas novas sobre mim.»
Em 2018, depois do terramoto de denúncias de assédio e violações do todo-poderoso ex-patrão da Miramax e da Weinstein Company, Uma Thurman também gritou #MeToo e aproximou-se do movimento de denúncias Time’s Up. No New York Times ela fez manchete ao assumir que foi violada aos 16 anos por um ator bem mais velho do que ela. Harvey Weinstein assediou-a várias vezes. Disse agora que se sentia culpada por ter permitido com o seu silêncio que o produtor pudesse fazer outras vítimas, o que se veio a confirmar com as denúncias mais recentes.
Nessa entrevista ao jornal nova-iorquino confirma que o ameaçou: «Se fizeres aquilo que me fizeste a outras pessoas, vais perder a tua carreira, a tua reputação e a tua família, garanto-te.»
No mundo dos filmes nem tudo o que luz é ouro e o glamour do cinema quase sempre se esfuma com o desligar do projetor. Aqui assenta bem o título de um dos primeiros filmes que vi com Uma Thurman... Ligações Perigosas
Henry e June, filme de 1990 no qual Uma Thurman contracena com Maria de Medeiros em cenas ousadas.
Em Pulp Fiction desempenha a personagem com lugar na história do cinema, Mia Wallace.
A ideia de Kill Bill foi uma sugestão de Uma Thurman ao realizador Quentin Tarantino.
Os acertos estéticos a que a atriz se submeteu deram muito que falar por terem alterado a sua imagem, mudando características que lhe eram únicas.