SOUSA MARTINS

Sousa Martins o Santo que não acreditava em Deus

Foi um médico afamado. Foi um vulto incontornável da sociedade do século XIX. Um pioneiro no ensino da medicina. Foi a sua generosidade que o tornou, aos olhos do povo, num santo homem.


 

CARLA JESUS




MARIANA DIAS queria muito que algo acontecesse na sua vida. Não era nada de fundamental, mas era algo de que gostava muito e queria muito. Fez o pedido diante da estátua de Sousa Martins, no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa... E aconteceu.


E quando aconteceu diz ter sentido uma «grande zombeira» nos ouvidos durante alguns segundos. «Uns dias depois, passei numa casa de santos e estava lá um livro do Sousa Martins, onde li: “Pede o que desejares e, quando fores atendido, sentirás um zumbido nos ouvidos.” Foi o que eu senti.» Desde então é-lhe devota. A imagem de Sousa Martins nunca lhe está muito longe da vista e está sempre perto do seu coração. Foi neste médico que Mariana encontrou um consolo para a sua alma, e todas as noites é o primeiro das suas orações. Pede-lhe ajuda e proteção, pede-lhe que a guie nas suas ações e ilumine o seu cami­nho.


Católica, Mariana Dias acredita em Deus, é devota de Santo António e da Nossa Senhora de Fátima, mas o mé­dico tem esse lugar especial nas suas orações. Sabe que Sousa Martins não é santo aos olhos da sua igreja. Sabe, mas isso não é relevante para a sua de­voção. Sente-se bem quando «fala» com ele, acredita que as suas preces são atendidas, e isso é a única coisa que lhe importa.


José Tomás de Sousa Martins foi um homem extraordinário, que se desta­cou no campo da medicina, da farmá­cia, da intervenção social e até da lite­ratura. Foi inúmeras vezes comparado a Ro­bin dos Bosques, não porque roubasse os ri­cos, mas por lhes co­brar avultadas somas pelas suas consultas médicas. Aos seus doen-tes mais pobres não co­brava nada, e não eram poucas as vezes que deixava dinheiro em cima das mesas de cabeceira, junta­mente com as receitas — para os me­dicamentos e para alguma comida que lhes confortasse os estômagos famin­tos. Entre os salões mais nobres e os la­res mais miseráveis do reino, Sousa Martins ganhou o prestígio e a desig­nação de santo. Foi imortalizado aos olhos do povo.


Nunca gostou que lhe atribuíssem tal notoriedade, nunca escreveu nada sobre si próprio, nem sobre o seu tra­balho, apenas sobre as suas investiga­ções, as suas conclusões médicas, as obras a que se dedicava. Aquilo que se sabe sobre a sua história é aquilo que os outros escreveram sobre ele, daí que seja uma história repleta de pontas sol­tas que se entrelaçam qual teia de ara­nha. No entanto, o seu nome ficará para sempre ligado à construção do primeiro sanatório em Portugal, loca­lizado na serra da Estrela, bem como à construção do Jardim Zoológico. Na luta contra a tuberculose teve a sua maior bandeira e também a causa da sua morte.

 

DE ALHANDRA A LISBOA 

«Quando entrardes de noite num hos­pital e ouvirdes algum doente gemer, aproximai-vos do seu leito, vede o que precisa o pobre enfermo e, se não ti­verdes mais nada para lhe dar, dai-lhe um sorriso», este era um dos lemas que se cumpria na enfermaria onde esta­vam os seus doentes, no Hospital de São José. Fazia questão de ensinar os seus alunos não só a tratar os pacien­tes, mas também a acalentá-los. Foi esta forma de ser e os doentes que foi resgatando à morte que o tornaram aos olhos do povo um santo e um mila­greiro.


À época vivia-se uma crise de fé na Igreja Católica em Portugal, o povo, cansado e esfomeado, tendia a olhar para além da Igreja que sempre tinham conhecido, e os homens bons serviam o propósito de quem precisava de acre­ditar em algo. Os católicos continuam a venerá-lo como santo, os espíritas in­tegram-no, a Igreja Apostólica Episco­pal santificou-o em 1990. Cada um da sua forma e na sua religião lhe presta homenagem, mas há locais de culto por excelência: o Campo dos Mártires da Pátria, diante da sua estátua e da «sua» Faculdade de Medicina; na Guarda, onde passou parte da sua vida a implementar o sanatório e onde o hospital distrital ainda mantém o seu nome; e em Alhandra, a vila onde nas­ceu em 1843 e onde morreu aos 54 anos, em 1897.


José Tomás nasceu nesta terra de gentes humildes, a uns escassos 30 quilómetros de Lisboa, a 7 de março. O quarto filho de Caetano e Maria das Dores nasceu na casa de família, na antiga Rua do Cais, atualmente desig­nada Avenida Sousa Martins. Em Alhandra vivia-se, sobretudo, do que o rio e a terra davam. O pai seria carpin­teiro e a mãe dedicava-se a cuidar dos filhos, da casa e da horta. Esta é a ver­são mais consensual relativamente às origens do médico. Uma versão em tudo semelhante à história de Jesus Cristo, também ele filho de um carpin­teiro, também ele nascido pobre, tam­bém ele «milagreiro». No entanto, há indícios de que a história familiar seja diferente. A casa de dois pisos junto ao rio seria, já à época, uma casa de pes­soas com algumas posses. Sabe-se que a mãe seria de um estrato social supe­rior ao do pai, e, efetivamente, nas ima­gens que se conhecem de Maria das Dores, esta traja não como as mulheres pobres da época, mas como as senho­ras mais abastadas do reino. Do que não restam dúvidas é da morte precoce do chefe de família e do terceiro filho do casal, Caetano.


José Tomás cedo assumiu o papel de homem da casa. A mãe desejava me­lhor sorte para o filho do que ficar por Alhandra. Desejava que o filho sou­besse ler e escrever. Que fosse para a cidade, que seguisse o curso do rio e fosse para Lisboa. Era ainda menino quando foi viver com o irmão da mãe, Lázaro Pereira. Tinha 12 anos quando chegou à capital. Acumulava os estu­dos em Humanidades no Liceu Nacio­nal de Lisboa com o trabalho de apren­diz na Farmácia Ultramarina, proprie­dade do tio e que se situava na Rua de São Paulo, junto ao Cais do Sodré. Durante muitos anos, mesmo depois da morte do médico, eram muitos os devotos que se deslocavam a esta far­mácia por acreditarem que os medicamentos que ali se vendiam ti­nham mais poder de cura do que os que eram adquiridos em farmácias «não aben-çoadas».

 

O FARMACÊUTICO E MÉDICO 

Toda a vida fumou. Ganhou o vício quando veio para Lisboa. O rapaz do campo cresceu e transformou-se num jovem mundano de hábitos citadinos. Fumar era um dos seus grandes praze­res. Tão grande que mesmo após a sua morte os seus devotos lhe continuaram (e continuam) a levar maços de tabaco aos locais de culto. Conta-se que dava explicações aos colegas de escola para ganhar dinheiro para satisfazer este vício.


Na farmácia do tio foi subindo de posto. De aprendiz passou a iniciado, deixou de ser apenas moço de recados para ficar atrás do balcão a aviar os re­ceituários, mas aquilo que o fascinava era a elaboração dos medicamentos. O tio Lázaro percebeu que o rapaz, além de vontade, tinha jeito, e espicaçou-o a seguir os estudos na área de farmácia. Em 1861, José Tomás fez os testes de admissão para a Escola Politécnica de Lisboa e entrou no curso de Far­mácia com a lição já meio aprendida à conta do estágio com o tio. A sede de saber era tal que, ainda o curso de farmácia ia a meio, deci­diu tirar também o de medicina, na Escola Mé­dico-Cirúrgica de Lis­boa. Terminou um curso em 1864 e o outro e 1866, ambos com a classificação mais elevada da sua turma. Assim, ganhou direito ao «Dou­tor» que antecede o seu nome sempre que se lhe referem, mesmo quando lhe dirigem as orações. José Tomás passou então a ser o Dr. Sousa Martins.


Mesmo doutor nunca deixou de ir a casa, a Alhandra. A mãe foi o seu grande pilar. Se tinha devoção por algo além da ciência era pela sua velha mãe. E ele seria sempre «o seu pe­queno». Foi uma das mulheres da sua vida, a par da irmã Maria Leonor. Ainda que haja quem defenda que teve as suas paixões e que inclusivamente deixou um descendente. Outros diziam que teve filhos com várias mulheres. Outros há ainda que defendem que teve vários filhos da mesma mulher e que chegou mesmo a ter netos. No en­tanto, nunca foi provado que assim fosse e que alguma vez tenha sido pai.

Ainda que fosse submisso à mãe e à vida familiar, não era um homem sub­misso. De criança traquina a jovem re­belde, Sousa Martins nunca desperdi­çava uma oportunidade de rir ou de pregar partidas. Tinha um sentido de humor mordaz, que chegou a usar como meio de intervenção. Quando decidiu escrever sobre a sociedade lis­boeta do século XIX, fez uso dessa mordacidade. Usou o pseudónimo de Zehobb Cervador (leia-se: Zé Observa­dor) para descrever o que se passava numa terra apelidada de «Ocidental Praia» (em tudo semelhante a Portu­gal), onde falava dos habitantes, que se dividiam em dois grandes grupos: os «comlábia» e os «semlábia». A crítica incidia, sobretudo, no Zerrich Aço (leia-se Zé Ricaço). Este livro, Costu­mes da Ocidental Praia – Evolução d’uma Lei no Período Metaphysico­-Physico-Immoral, acabou por ser reti­rado das livrarias por decisão do pró­prio autor.

 

O HOMEM DOS MIL SABERES 

Tinha um fascínio especial por aves, mas não foi apenas às aves que se de­dicou. Fez parte da comissão funda­dora do Jardim Zoológico e de Aclima­ção em Portugal, e manteve-se ligado a esta instituição até à data da sua morte. Amava a literatura e conta-se que a sua casa terá até sido um dos primeiros salões literários da época, tendo por ali passado nomes como Camilo Castelo Branco e Eça de Quei­rós. Foi sócio-funda­dor da Sociedade de Geografia de Lisboa. Chegou mesmo a ser diretor do Instituto In­dustrial e Comercial de Lisboa. Nunca quis saber de política, ainda que todos os partidos desejassem tê-lo como membro, em virtude do seu dom para a oratória. Apaixonado pela medicina e pela farmácia, fazia obvia­mente parte da Sociedade das Ciên­cias Médicas de Lisboa e da Socie­dade Farmacêutica Lusitana. Tudo o interessava. Tinha uma sede insaciá­vel de conhecimento.


Era irrequieto e progressista, e os seus alunos na Faculdade de Medi­cina foram os seus primeiros devotos. Era arrojado nas ideias e nas teorias, e muitas vezes o arrojo e a ironia va­liam-lhe inimigos, nomeadamente entre os seus colegas médicos. A en­fermaria de São Miguel, no Hospital de São José, estava a seu cargo. E era para ali que muitas vezes levava os seus alunos e lhes ensinava as maio­res lições de medicina, mas, mais im­portante, as maiores lições de huma­nismo. Quedava-se junto dos doentes, exercia todos os seus conhecimentos, e mesmo quando isso já não era sufi­ciente, ficava ali a consolar-lhes a alma.


Acabou por contrair a doença con­tra a qual tanto lutou ao longo da sua car­reira na medicina: a tuberculose. Ao chegar a Portugal, depois de ter participado numa conferência em Ve­neza, demonstrava um estado de saúde de­masiado débil. Dema­siado magro, com uma tosse profunda e in­controlável, refugiou­-se na sua terra, Alhan­dra. Recolheu à sua propriedade em São João dos Montes. Rapidamente sucumbiu à doença, que conhecia demasiado bem. Mor­reu a 17 de agosto de 1897. Apagou-se a luz mais brilhante do reino, disse­ram.


A admiração de que era alvo trans­formou-se rapidamente em devoção, e o povo, que não o esqueceu, tornou--o santo. Esta crença é de tal dimen­são que a maioria das pessoas desco­nhece a importância que este homem teve no desenvolvimento cultural e social do país na última metade do sé­culo XIX. Denominam-no santo, e muitos nem sequer sabem que não o é aos olhos da Igreja Católica; acredi­tam nos seus poderes transcendentais e, tal como os seus doentes, sentem o consolo de ser protegidos pela sua alma caridosa.

 

Assim é com Mariana Dias, que, de­pois de ter ouvido o tal zumbido nos ouvidos, faz o seu caminho passar pelo Campo dos Mártires da Pátria sempre que pode. Ali, deixa-lhe as suas flores e as suas preces. Sente-se tocada por uma tranquilidade sem fim, e por isso, quando se vem em­bora, nunca lhe vira as costas, vem sempre de olho no seu Sousa Martins até o perder de vista.



Quando construiu a casa na terra, Mariana queria pôr-lhe um painel de azulejos com a imagem do seu santo, mas temeu que as pessoas da terra in­terpretassem mal a sua devoção e co­meçassem com o falatório das bruxa­rias e crendices tantas vezes associa­das ao médico. Optou por uma imagem da santa padroeira da terra, para evitar conversas. O que não dis­pensa nunca é o busto de Sousa Mar­tins que tem na cabeceira e que é a primeira imagem que tem quando acorda e a última que vê antes de adormecer, depois das suas orações. No seu coração, o homem que nunca foi santo e que nunca acreditou nas coisas da Igreja é o seu maior amparo.

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