UMA PÍLULA DIFÍCIL DE ENGOLIR
Há demasiados idosos a tomar medicação cujos estragos prováveis não compensam os benefícios potenciais.
Será altura de começar a «desreceitar»?
Claire Sibonney
Quando era mais novo, DeLon Canterbury, farmacêutico de Durham, na Carolina do Norte, foi testemunha em primeira mão dos danos que alguns medicamentos podem causar. A sua avó, na casa dos 80 anos e que sofria de demência, estava em rápido declínio. Tornou-se mais retraída e irritável, e perdia frequentemente objetos como os óculos e a dentadura. O seu estado obrigou-a a deixar o lar de idosos e a ir viver com a mãe de DeLon Canterbury.
Durante a renovação da prescrição de rotina, o farmacêutico avisou a mãe de DeLon que um dos medicamentos, um antipsicótico, estava a agravar os sintomas de demência da mãe. «Este medicamento vem com um aviso de caixa preta da Food and Drug Administration – o tipo de aviso mais grave para qualquer medicamento», diz DeLon. «Indica que, para os doentes com demência e problemas de comportamento, este medicamento pode não só piorar o seu estado, como aumentar o risco de morte.»
Doentes como a avó de Canterbury não são raros. Evidenciam os riscos da medicação excessiva, particularmente entre os adultos mais velhos. Uma parte significativa da população toma vários medicamentos, uma prática conhecida como «polifarmácia» – na Europa, as taxas de polifarmácia entre pessoas com 65 anos ou mais situam-se entre os 26 e os 40%. Cerca de 20% dos canadianos com idades compreendidas entre os 40 e os 79 anos tomam cinco ou mais medicamentos por mês. Mais de um terço dos australianos com mais de 70 anos são polifarmacêuticos.
Emily McDonald, professora associada de Medicina na Universidade McGill, em Montreal, e diretora científica da Canadian Medication Appropriateness and Deprescribing Network, assistiu em primeira mão ao aumento do uso excessivo de medicamentos. «O número médio de medicamentos que os meus doentes tomam em medicina interna é de dez, e esse número aumentou nos últimos dez anos. Tenho visto esse número aumentar sem parar», diz.
Também noutros países, farmacêuticos e investigadores estão a tentar conter o agravamento do problema. Nos lares de longa duração na Austrália, 90% dos residentes tomam pelo menos cinco medicamentos todos os dias. No trabalho que desempenha como farmacêutica na ala de geriatria de um grande hospital em Adelaide, Emily Reeve deparou-se com doentes assustados com as extensas rotinas diárias de medicação.
«Muitas vezes brincavam com a situação, dizendo coisas como: “Tomo tantos comprimidos que faço barulho quando ando”», recorda. «Os doentes podem começar o dia com uma medicação para o coração, seguir com um ou dois comprimidos para a tensão arterial, adicionar medicamentos para a diabetes e um suplemento vitamínico e, no final do dia, tomar algo para as dores nas articulações ou as insónias», explica.
Emily, atualmente investigadora sénior no Centro de Utilização e Segurança dos Medicamentos da Universidade Monash, em Melbourne, ficou preocupada com o facto de alguns medicamentos poderem ser desnecessários ou mesmo prejudiciais para a saúde dos doentes. E estudos recentes confirmam esse facto. De acordo com uma análise publicada no Journal of the American Medical Association no ano passado, cerca de 37% das prescrições para adultos mais velhos em todo o mundo são potencialmente inadequadas. Uma apresentação feita pela Organização Mundial de Saúde no início deste ano afirmou que a medicação é responsável por 50% dos danos evitáveis nos cuidados médicos.
Um estudo da Universidade de Liverpool concluiu que as reações adversas relacionadas com a utilização simultânea de vários medicamentos estão na origem de um em cada seis internamentos hospitalares e, nos EUA, o Lown Institute refere que o excesso de medicação provocará mais de 150 mil mortes prematuras e 4,5 milhões de internamentos hospitalares entre 2020 e 2030.
Durante décadas, a indústria dos cuidados de saúde favoreceu o aumento e não a redução das prescrições, mas está em curso uma grande mudança. Uma frente unida de médicos, farmacêuticos e enfermeiros é pioneira no movimento de «desprescrição», que se dedica a reduzir a utilização de medicamentos de forma segura e eficaz, marcando uma mudança profunda nos cuidados aos doentes.
DEMASIADOS COMPRIMIDOS
A SOBREPRESCRIÇÃO CONDUZ a vários problemas. Em primeiro lugar, as pessoas que tomam demasiados medicamentos, em particular os adultos mais velhos, correm um maior risco de sofrer efeitos secundários, que podem variar entre o incómodo e o grave. «Isto deve-se ao facto de, à medida que envelhecemos, o nosso corpo processar os medicamentos de forma diferente, tornando-nos mais sensíveis aos seus efeitos», afirma David Alldred, professor de utilização e segurança de medicamentos na Universidade de Leeds, em Inglaterra.
Em segundo lugar, a prescrição pode ser uma bola de neve ao longo do tempo. Inicialmente, um novo medicamento pode ser exatamente aquilo de que necessitamos mas, à medida que desenvolvemos novos problemas de saúde, são adicionados mais medicamentos. Por vezes, são prescritos novos medicamentos para gerir os efeitos secundários dos anteriores. Em pouco tempo, «pode estar a tomar 10, 15, 20 medicamentos», diz David Alldred. Alguns doentes sentem que gerir a sua medicação tornou-se um emprego – um emprego para o qual não se candidataram.
Para complicar ainda mais a situação, os ensaios de controlo aleatório de medicamentos são geralmente realizados em pessoas mais saudáveis e mais jovens que não estão a tomar outros medicamentos.
Igualmente problemático é o facto de vários especialistas poderem prescrever medicamentos sem uma abordagem coordenada.
Os especialistas alegam que a prescrição deve ser uma parceria entre os doentes e os prestadores de cuidados de saúde para garantir que, à medida que os doentes envelhecem, a medicação continua a ser adequada e eficaz.
Quase todos os medicamentos, incluindo os que se destinam a doenças críticas como a diabetes ou a hipertensão arterial, devem ser regularmente avaliados e ajustados, mesmo que não sejam de todo interrompidos, aconselha o professor David Alldred. «Não há nenhum medicamento que não tenha efeitos secundários», afirma. «É tudo uma questão de equilíbrio.»
Os medicamentos devem ser prescritos quando os potenciais benefícios são superiores aos perigos. Isto é particularmente verdade quando estão em causa doenças graves, como a prevenção de acidentes vasculares cerebrais ou o tratamento do cancro. Por exemplo, embora a quimioterapia possa causar efeitos secundários graves, não tratar o cancro pode levar a resultados ainda mais graves.
A prescrição excessiva de medicamentos para doenças crónicas e graves é um grande problema, afirma o Dr. Michael Steinman, médico e coinvestigador principal da U. S. Deprescribing Research Network e professor de Medicina na Universidade da Califórnia, em São Francisco (UCSF), especializado em cuidados geriátricos.
À medida que as pessoas envelhecem, tratar a tensão arterial elevada de forma demasiado agressiva, por exemplo, pode levá-la a um nível tão baixo que os doentes se tornam vulneráveis a tonturas e quedas, o que pode provocar lesões que aceleram a morte nos idosos.
Alguns dos medicamentos mais receitados em excesso são os opiáceos e os sedativos, como as benzodiazepinas. Embora sejam muito importantes para o tratamento da dor aguda e grave, os opiáceos acarretam riscos como a dependência, a diminuição da função cognitiva e motora e o aumento da probabilidade de sobredosagem, sobretudo quando os doentes tomam doses mais elevadas, explica o Dr. Steinman.
A professora Emily McDonald, da Universidade McGill, tem assistido em primeira mão no seu hospital às consequências da prescrição excessiva, quer se trate de idosos que caem e partem a anca, que chegam confusos e delirantes ou que não conseguem regressar a casa para cuidar de si próprios.
Diz que não seria capaz de trabalhar se tomasse todos os medicamentos sedativos que são prescritos a alguns dos seus doentes. «Não é de admirar que as pessoas caiam e percam a memória, a capacidade de conduzir e a autonomia», afirma Emily McDonald. «É impressionante o facto de isto poder ser evitado.»
Emily Reeve, da Universidade de Monash, diz que quanto mais medicamentos estivermos a tomar, maior é a probabilidade de não resultarem bem em conjunto. Isto pode torná-los menos eficazes ou causar reações negativas e por vezes perigosas. Tomar vários medicamentos também torna mais difícil controlar o seu funcionamento e a altura em que devem ser tomados. Quanto mais medicamentos forem prescritos a uma pessoa, maior é a probabilidade de continuar a tomar medicamentos desnecessários e de não tomar os que são essenciais.
O custo de tomar vários medicamentos aumenta rapidamente – não só pelo preço dos medicamentos em si, mas também com as consultas médicas adicionais ou os tratamentos necessários para gerir os efeitos secundários ou as interações entre medicamentos.
Mesmo os medicamentos não sujeitos a receita médica, como as vitaminas, suplementos ou analgésicos, aumentam os riscos e os custos, diz a Dra. Emily Reeve. Por exemplo, a toma de anticoagulantes e de analgésicos anti-inflamatórios não esteroides (AINE) pode aumentar o risco de hemorragias graves. Ou a combinação de alguns medicamentos para a tensão arterial, como os inibidores da ECA, com um suplemento de potássio pode causar problemas no ritmo cardíaco.
MEDICAMENTOS DE SOLUÇÃO RÁPIDA
A SOBREPRESCRIÇÃO ACONTECE POR várias razões, de acordo com os especialistas, incluindo a natureza de solução rápida do nosso sistema de saúde, em que os médicos prescrevem medicamentos para quase todas as queixas, desde insónia e ansiedade a refluxo.
Os doentes podem continuar a tomar os medicamentos simplesmente porque não sabem que podem parar ou porque os médicos assumem que preferem continuar a tomá-los. Afinal de contas, a faculdade de medicina concentra-se em colocar as pessoas a tomar medicamentos, não em retirá-los. «Temos um comprimido para cada doença», diz a Dra. Emily McDonald. «Infelizmente, é muito mais rápido receitar um comprimido do que explicar a alguém porque é que pode não ser a melhor opção.»
Além disso, em áreas que não partilham registos médicos, a falta de comunicação entre os prestadores de cuidados de saúde pode obscurecer o quadro geral do tratamento de um doente. A comercialização de medicamentos também pode desempenhar um papel importante, exagerando os benefícios dos medicamentos e influenciando os doentes a pedirem mais receitas aos médicos.
Georges Marcoux, de 79 anos, funcionário público reformado de New Brunswick, no Canadá, esteve dependente de comprimidos para dormir durante trinta e cinco anos. Inicialmente, foram-lhe receitados em apenas três minutos para combater as insónias causadas pelo stress profissional. Ao longo dos anos, o médico de família e outros médicos de clínica geral nunca levantaram a hipótese de reduzir ou parar a medicação.
Marcoux acreditava que os comprimidos eram necessários, mas muitas vezes deixavam-no tão sonolento que conduzir não era seguro e tinha dificuldade em processar a informação. «Havia palavras que não conseguia entender», confessa, contando as vezes em que pedia aos colegas que esclarecessem conversas que ele não conseguia acompanhar.
Há alguns anos, Marcoux viu um anúncio no jornal sobre um ensaio na Universidade de Dalhousie, em Halifax, na Nova Escócia, para ajudar os idosos a deixarem de tomar comprimidos para dormir. Tendo perdido cinco dos seus irmãos devido à doença de Alzheimer, tinha plena consciência da sua própria vulnerabilidade. Alguns estudos relacionaram o uso prolongado de comprimidos para dormir com um risco acrescido de demência.
Com instruções passo a passo sobre como reverter a insónia e com o apoio do professor de Farmácia e Psiquiatria que liderou o estudo, Georges Marcoux deixou de tomar os comprimidos de benzodiazepina no espaço de um ano. Atualmente, trabalha com os investigadores para ajudar a apoiar outros doentes que tentam seguir o mesmo caminho. «Quando estava a tomar comprimidos para dormir, acordava de manhã mal-humorado», confessa Marcoux. «Agora acordo de manhã e começo a assobiar.»
DESPRESCREVER COM SEGURANÇA
OS ESPECIALISTAS SALIENTAM que ninguém deve deixar de tomar os medicamentos sem antes falar com um profissional de saúde. Mas em vez de começar com «Que medicamento devo tomar?», os defensores da desprescrição esperam que os doentes perguntem: «Este medicamento é mesmo necessário?» Esta reformulação está no centro de um movimento crescente entre médicos, farmacêuticos e investigadores para inverter a maré da sobremedicação, e o Canadá está a liderar o processo.
A Deprescribing.org desenvolveu diretrizes baseadas em provas para a desprescrição de diferentes classes de medicamentos, desde tratamentos para a azia a benzodiazepinas. As diretrizes, fáceis de seguir, estão a ser utilizadas em estudos e na prática clínica em todo o mundo, incluindo a Europa, a América do Sul e a Ásia.
Os investigadores canadianos também estão a introduzir avanços na educação dos doentes. Em dois ensaios clínicos, designados EMPOWER e D-PRESCRIBE, os doentes receberam panfletos que explicavam como interromper com segurança os medicamentos desnecessários e como envolver os seus prestadores de cuidados de saúde no início do processo. Estes materiais estão agora a ser utilizados na União Europeia.
Anne Spinewine, doutorada, professora de Farmácia na UCLouvain, na Bélgica, e membro da Rede de Investigadores Europeus em Desprescrição, afirma que são necessárias soluções mais específicas para cada cultura. «Na UE ainda temos uma diversidade muito maior entre os países, pelo que um dos nossos desafios é também adaptar o que fazemos aos diferentes contextos nacionais.»
Universidades e investigadores da UE, Suíça e Canadá estão a colaborar num projeto, chamado BE-SAFE, para reduzir o uso excessivo de comprimidos para dormir nos adultos mais velhos. Anne Spinewine, um dos principais membros do consórcio, destaca um dos maiores desafios: «Os doentes subestimam os riscos dos medicamentos.» A Autoridade de Saúde Dinamarquesa lançou recentemente uma campanha nacional para ensinar aos doentes que muitos medicamentos não devem ser tomados para toda a vida.
Carina Lundby, professora assistente de Farmacologia Clínica na Universidade do Sul da Dinamarca e diretora de investigação no Hospital Universitário de Odense, afirma que grande parte do seu trabalho foi inspirado em conversas com pessoas em lares de idosos. Um dos seus estudos revelou que a admissão num lar de idosos estava associada ao aumento a longo prazo da medicação.
«Ver e aprender como muitos dos idosos se debatiam com a medicação – não tendo a certeza da sua adequação, comunicando com os profissionais de saúde – fez com que me interessasse por maneiras de otimizar a utilização da medicação, incluindo a desprescrição», afirma Carina Lundby, que há dois anos ajudou a liderar a primeira Conferência Internacional sobre Desprescrição.
Alguns doentes têm de ser convencidos a deixar de tomar medicamentos. «As pessoas podem presumir que os médicos têm conhecimento de todos os medicamentos que tomam e que os avaliaram rigorosamente e confirmaram que são adequados e ainda necessários», afirma o Dr. Steinman, da UCSF. «Mas, apesar dos melhores esforços dos médicos, muitas vezes não é esse o caso. E é por isso que é muito importante que as pessoas peçam informações aos seus profissionais de saúde sobre cada um deles.» Em vez de tentar colocar estas questões durante uma consulta, acrescenta, deve pensar em marcar uma consulta em separado.
Olhando para soluções de alta tecnologia, Emily McDonald, da McGill University, coinventou o MedSafer, uma ferramenta baseada na web que orienta os médicos e os pacientes no processo de desprescrição. Num ensaio clínico de 2022, demonstrou reduzir com segurança a utilização de receitas médicas. Outra nova ferramenta, TaperMD, criada por uma equipa liderada pelo Dr. Dee Mangin da Universidade McMaster em Hamilton, no Ontário, ajuda os médicos e os doentes a trabalharem em conjunto para reduzir ou deixar de tomar a medicação de forma segura.
Olhando para o futuro, alguns especialistas alegam que a inteligência artificial (IA) é promissora. «A IA poderá permitir-nos identificar melhor as pessoas que correm um risco elevado de sofrer danos relacionados com os medicamentos», afirma Alldred, da Universidade de Leeds.
OS DEFENSORES DA DESPRESCRIÇÃO estão animados por verem os farmacêuticos a liderar o movimento. Depois do farmacêutico comunitário ter insistido para que a avó de DeLon Canterbury interrompesse a medicação antipsicótica, ela pôde regressar a um lar de idosos, onde viveu bem até aos 90 anos. «Foi muito importante para nós, pois estávamos a confiar no médico, no sistema de saúde e nos medicamentos para a ajudar a melhorar, mas acabámos por ser defendidos pelo farmacêutico», afirma DeLon Canterbury.
A experiência mostrou-lhe que as pessoas precisam dos cuidados certos. Canterbury acabou por se tornar farmacêutico geriátrico certificado, especializado em desprescrição. «Queria ajudar as pessoas que não podem falar por si próprias», afirma.
Com a sua empresa de consultoria em cuidados a idosos GeriatRx, DeLon Canterbury atende sobretudo idosos de zonas rurais e com baixos rendimentos. Também dá formação a farmacêuticos para realizarem análises de medicamentos, desenvolverem planos de desprescrição e defenderem os doentes. Numa história recente de sucesso, impediu que um doente idoso fosse forçado a ir para um lar depois de ter descoberto que lhe estavam a ser prescritos indevidamente sedativos semelhantes aos que alteravam o comportamento da sua avó.
«Infelizmente, atribuímos muitos problemas a “Oh, o avô está só a ficar velho”, mas essas são observações inerentemente antiquadas e temos isso no nosso sistema médico», diz. «Atribuímos muitas coisas ao simples facto de “ele/ela ser velho/a” e “isto é normal”. Não é normal.»
Ao defenderem práticas de prescrição ponderadas, os prestadores de cuidados de saúde como Canterbury pretendem que cada prescrição seja não só a necessária, como também eficaz e segura.