De todos os atores com quem tive a oportunidade de conversar ao longo dos anos, este é um dos que melhor personificam o ídolo do cinema. Para os adolescentes do final da década de 1980, ele foi o verdadeiro coreógrafo
das paixões.
Mário Augusto
Foi um produtor de espetáculos musicais, Robert Stigwood, quem, com a intenção de começar a fazer cinema, comprou os direitos de adaptação de um artigo de treze páginas publicado na New York Magazine, uma reportagem assinada pelo inglês Nik Cohn. O repórter passou longas noites com os jovens de Brooklyn que às sextas-feiras, depois do trabalho, viviam como se não existisse amanhã. O filme estreou a 16 de dezembro de 1977 e registou uma das maiores faturações do cinema naqueles anos de disco sound, quase 300 milhões.
Há quarenta e cinco anos, por esta altura, John já andava às voltas no bairro de Brooklyn, a rodar um filme para jovens sem grandes expectativas mas que iria marcar uma geração. Ao longo dos anos tenho conseguido falar com Travolta, e a conversa vem sempre ter a este filme e à ressurreição da carreira com Tarantino, também ele dançou, ou tentou dançar, a música dos Bee Gees.
Em 1977, quando estreou Febre de Sábado à Noite, os filmes costumavam ficar em cartaz várias semanas, ou mesmo largos meses, quando se transformavam em verdadeiros êxitos de bilheteira. Ainda não existiam os multiplex, o som das salas era globalmente mau e em muitas delas era emitido em mono, e os cartazes que publicitavam os filmes à entrada dos cinemas eram telas gigantescas pintadas à mão que ocupavam toda a fachada dos edifícios. Sim, porque nesse tempo os cinemas ainda ocupavam edifícios próprios, normalmente situados em locais nobres dos centros das cidades.
Foi tempo em que os filmes que davam que falar levavam multidões ao cinema, faziam-se filas para comprar o bilhete. Os Bee Gees e o fato banco de John Travolta ficaram na memória, por cá houve até uma edição especial da revista Música e Som que ensinava os passos de coreografia para o célebre Stayin’ Alive, aquela pista de dança de quadrados luminosos que hoje está replicada no museu e a original foi vendida há cinco anos num leilão por mais de um milhão de dólares.
Travolta rodou logo a seguir Grease, do mesmo produtor, o que lhe reforçou a fama, mas depois andou muitos anos sem rumo profissional e artístico pelos labirintos de Hollywood, até que o seu cruzamento com Quentin Tarantino, em 1994, lhe restituiu o êxito da carreira.
E foi precisamente por aí, pelo seu cruzamento com Tarantino, que iniciei a conversa com Travolta: «De facto, ele foi importante na minha vida de ator. Só o conheço desde 1994. Telefonou-me para falar de Pulp Fiction, pois queria convidar-me para entrar no filme, e acabou por falar de toda a minha carreira! Ele sabia tudo! As séries de televisão em que participei, todos os filmes, enfim, um autêntico biógrafo. Falou-me de pormenores de que já nem eu me lembrava [risos]! Acabei esse primeiro encontro com o Quentin a citar um artigo que o Truffaut escreveu a meu respeito em 1979. Foi incrível! E quem demonstrou tanta simpatia por mim não poderia, de forma alguma, ter a minha recusa em participar num filme que não se sabia muito bem até onde poderia chegar.»
Com efeito, Pulp Fiction era um tiro no escuro para todos os envolvidos, uma produção independente de baixo orçamento, embora sentissem, assim que começou a rodagem, que estavam a fazer algo diferente: «Quando assinei o contrato ainda não tinha a dimensão real do material que tinha para filmar, mas a verdade é que nada tinha a perder. Quando fui a Cannes, ainda não tinha assistido ao filme completamente pronto. Estive empenhado no projeto a todos os níveis e tive uma sensação incrível quando, no final da projeção, toda a gente veio ter comigo a dar-me os parabéns. Nessa altura, fugi para o quarto do hotel onde estava instalado e chorei imenso. Tinha passado demasiado tempo sem que nada de verdadeiramente interessante me acontecesse. Dessa vez, em Cannes, tive a grata sensação de que a minha carreira estava a mudar. Senti que aplaudiam o filme, mas que, ao fazê-lo, destacavam também a minha interpretação.» Percebi nestas palavras de John Travolta uma enorme sinceridade.É um daqueles atores cuja carreira fui seguindo com curiosidade e que tive a oportunidade de entrevistar várias vezes. O nosso primeiro encontro decorreu em 1995, no Festival de Cinema de Berlim, num dia particularmente frio e invernoso, e teve por mote o filme Get Shorty – Jogos Quase Perigosos, que em 2005 teve uma continuação. Como é evidente, levava na manga uma série de perguntas sobre o ressuscitar da sua carreira após ter filmado Pulp Fiction com Quentin Tarantino. É que Tarantino, tal como eu, tinha bem presente na memória Febre de Sábado à Noite. Aliás, o assunto Travolta foi tema recorrente em todas as conversas que já tive com Tarantino. Só nunca lhe perguntei se chegou a comprar alguma revista, tal como eu, para tentar dar uns passos de dança ao som do maior hit dos Bee Gees, embora me tenha confirmado que também ele cresceu com a imagem kitsch do fato de Tony Manero a reluzir nas pistas de dança.
Ator muito sereno, que no decorrer das conversas transmite calma e transborda simpatia, revela todas as características próprias dos seguidores da Cientologia, dos quais também faz parte, entre outros, Tom Cruise. A entrevista prosseguiu, e grande parte dela continuou a ser ocupada com o volte-face na carreira que lhe foi proporcionado por Pulp Fiction, o filme da ressurreição de Travolta – uma designação da qual o ator prefere discordar: «Eu sei que vocês gostam de lhe chamar regresso, mas eu não concordo pois continuei a fazer filmes. Em parte, foi uma travessia do deserto, é verdade, mas Hollywood não é de modo algum fácil. Há pessoas que, quando aquilo que damos não corresponde ao que elas querem de nós, pura e simplesmente riscam-nos do mapa.»
Insisti e perguntei-lhe: «Quando fala em travessia do deserto refere-se aos anos em que, de facto, nada fez [1985 a 1989], ou aos filmes que a crítica não aplaudiu?» A resposta foi imediata e frontal: «Não, falo mesmo do tempo difícil em que não tive filmes para fazer. Os outros trabalhos, por exemplo a série Olha Quem Fala, têm para mim a mesma importância profissional. A crítica não gostou, sei disso, mas deu-me muito gozo fazê-los. Ou seja, Pulp Fiction não foi propriamente um regresso, mas uma viragem na minha carreira. Mudou tudo. Se houve algum tipo de regresso, foi nos cachets mais altos… [risos]»
«Pronto, não volto a chamar-lhe regresso», disse-lhe eu, ao que Travolta ripostou: «Não fico aborrecido com isso. Só que vocês, jornalistas, ao longo da minha carreira já profetizaram o meu regresso por diversas vezes. Foi assim com Urban Cowboy, depois com Stayin’ Alive, e na série Olha Quem Fala os jornais de Los Angeles escreveram mesmo: “Olha quem regressou.” [Risos.] Costumo dizer que a minha carreira tem sido um regresso constante há mais de vinte anos.»
Voltemos então às conversas com Tarantino, que costuma dizer não ter sido fácil convencer Travolta a aceitar o papel que lhe estava destinado em Pulp Fiction. O próprio confirmou-me a história: «É verdade. Mas essas dúvidas não eram pelo risco. Eu, em termos de carreira, atravessava uma fase em que nada tinha a perder e precisava mesmo de fazer algo diferente. As minhas dúvidas tinham a ver, sobretudo, com algumas cenas de violência do filme. Não gosto de fazer a apologia da violência. Mas depois de ler bem o argumento, mudei de opinião. É que, no final, o lado bom ganha. E agora posso dizer: ainda bem que aceitei o convite.»
Como membro fervoroso e ativo da igreja da Cientologia, que tem imensos acólitos na comunidade de Hollywood e explora uma visão científica da religião também baseada nalguns fundamentos do budismo, Travolta tem sido dos que mais frequentemente aparecem em público a fazer a sua
apologia. Confrontei-o com as acusações de que a igreja da Cientologia é alvo nos EUA, alegadamente por funcionar como um dos mais influentes lobbies da comunidade artística: «As pessoas contestam-na porque não a conhecem bem. Então os jornalistas… escrevem as coisas mais incríveis, tudo por falta de conhecimento. Devo dizer que foi a Cientologia, à qual aderi há mais de vinte anos, que me ajudou a superar muitos dos problemas que tenho encontrado ao longo da vida: a morte de pessoas próximas ou os momentos maus da minha carreira. Há um grande número de seguidores na comunidade cinematográfica, mas também há advogados, médicos, pessoas anónimas.»
ULTRAPASSADO POR TOM CRUISE,
KEVIN COSTNER E MEL GIBSON
Apesar da fé, Travolta chegou a ponderar o abandono da carreira durante a travessia do deserto a que se viu obrigado no final da década de 1980, quando Hollywood deixou de apostar nele como ator da primeira divisão: «Foi uma época má. Quatro anos é muito tempo e em Hollywood é uma eternidade. Costumo comparar a indústria dos filmes a um comboio no qual pretendemos embarcar. Houve períodos em que fui apenas um passageiro; outros, em que tive de esperar na estação. Nesta altura, e graças sobretudo a Pulp Fiction, faço parte da locomotiva.»
Travolta teve sorte. Agarrou a oportunidade que lhe surgiu, no momento certo e com o projeto adequado. Olhando retrospetivamente, pode afirmá-lo melhor do que ninguém no universo difícil da indústria dos filmes: «É a vida. Nem sempre a sorte está virada para nós numa determinada altura. Quando fiz Febre de Sábado à Noite, ofereciam-me papéis que tinham a ver com a minha idade e um pouco também com o rótulo que Hollywood me colou. Tinha 22 anos quando fiz o filme, e essa foi uma imagem que me ficou agarrada.
A partir de meados da década de 1980, fui envelhecendo [risos] e o tipo de papéis que eu podia assumir passou a ser entregue a outros atores mais jovens ou mais na moda, como o Tom Cruise, o Kevin Costner ou o Mel Gibson. Tive então que me contentar com aquilo que me era oferecido, mas mantendo sempre a fé nas minhas capacidades como ator. Sabia qual era a minha única hipótese: encontrar um realizador que quisesse apostar em mim. Foi o que me aconteceu com o Tarantino. Ele confiou em mim. E como um ator só tem garra e determinação quando se sente apoiado, em Pulp Fiction senti-me a renascer porque senti toda a confiança e liberdade que me foram proporcionadas por Tarantino.»
O empenho de Travolta neste projeto foi tal que chegou ao ponto de pagar algumas contas da produção e, no final, cobrou um cachet de apenas 140 mil dólares. Uma história cuja confirmação lhe pedi: «Não foi bem assim. Paguei apenas alguns alojamentos de atores em locais de rodagem. O Bruce Willis fez o mesmo. A partir de determinada altura, acreditámos mesmo na genialidade de Tarantino.»
Apesar de alguns fracassos e de opções menos conseguidas, com a crítica a olhar de lado, novamente, para essas prestações de Travolta, o ator faz agora uma média de dois filmes por ano, cobrando 20 milhões de dólares por cada produção. Na última entrevista que lhe fiz, em 1998, confrontei-o com o recorte elogioso de um jornal norte-americano em que o título, cujo trocadilho só funciona no original, rezava assim: «Travolta no acting… Reacting to the caracter.» [Travolta não representa… reage às personagens.] «Eu também li isso. Achei giro porque, realmente, penso que a fusão entre o ator e a personagem só acontece quando se manifesta essa capacidade de trazermos connosco a personagem durante todo o tempo em que se faz o filme – em casa, na rua, em todo o lado. É mais fácil representar quando essa fusão acontece.»
Ironia do destino, Travolta é atualmente um dos atores mais bem pagos de Hollywood. Também lhe falei dessa sua nova realidade e ele abordou-a sem complexos: «Dizem que sim, mas olhe que o dinheiro pouco importa, não ligo muito a isso. Prefiro ter uma vida calma, estar rodeado de verdadeiros amigos e, acima de tudo, estar de bem comigo próprio. Foi sempre esta a minha filosofia de vida, tanto nos bons como nos maus momentos. Gosto de viver a vida com emoção.»
Por falar em emoções... além do cinema, Travolta tem uma grande paixão por aviões, e não há muito tempo chegou a dar a volta ao mundo aos comandos de um Boeing! «É verdade, até tenho três aviões. Gosto tanto de aviões que dei o nome Jett ao meu filho. Veja lá até onde vai essa paixão pelo voo!»
Uma das vezes, terminei a entrevista tentando pô-lo a dizer algumas palavras em português, isto porque a personagem que Travolta interpreta no filme O Fenómeno obrigou-o a aprender alguns rudimentos da nossa língua. A solução, disse ele, foi aprender sem se preocupar com o significado das palavras: «É que vocês têm uma das línguas mais difíceis de aprender que eu conheço...»
Depois, e como já havia acontecido, perguntou-me como estava Maria de Medeiros, não poupando nos elogios à atriz com quem trabalhou no tal filme que começou com um telefonema de Tarantino e que provocou uma reviravolta na então estagnada carreira do ator.
Hoje com 68 anos, a vida de John Travolta tem sido marcada pela tragédia: em 2009, nas Bahamas, morreu-lhe o filho Jett, e mais recentemente a mulher, também atriz, Kelly Preston, vítima de cancro da mama.
O que o cinema tem de melhor para lá do sonho é que eterniza sem rugas os nossos ídolos, e quem viveu a adolescência nos anos 80 bem se lembra que este ator, por muito que envelheça, continuará Stayin´Alive, como cantavam para ele os Bee Gees.
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5 HISTÓRIAS A RECORDAR
1
Boa parte do sucesso da carreira de Richard Gere deve ser atribuído a John Travolta, já que o ator de Febre de Sábado à Noite declinou os convites que lhe foram previamente dirigidos para desempenhar os papéis principais em Dias do Paraíso, American Gigolo e Oficial e Cavalheiro.
2
Outra das recusas famosas de Travolta aconteceu com o filme Splash, a Sereia, que por sugestão do seu agente não era filme que interessasse a um ator do seu nível. Mas a fita não só foi um enorme sucesso como também constituiu a grande oportunidade que abriu caminho à carreira de Tom Hanks.
3
Antes de filmar Febre de Sábado à Noite andou nove meses a aprender a dançar disco sound.
4
Possuiu três aviões, entre os quais um Boeing 707 e um Gulfstream, aeronaves de grande porte que estão estacionadas na sua casa na Florida, onde dispõe de aeroporto privado.
5
O produtor Robert Stigwood só contratou os Bee Gees para fazerem a banda sonora do filme depois de as filmagens terem terminado. Em cena, John Travolta dança em sincronia com a música dos Bee Gees, mas as músicas que ouviam e dançavam eram de Stevie Wonder e Boz Scaggs. No final tudo bateu certo. Stayin’ Alive ainda hoje não nos sai do ouvido.