ESPERANÇA PARA UMA JOVEM DE GAZA
LAYAN, DE 13 ANOS, PENSOU QUE A SUA VIDA TINHA TERMINADO QUANDO PERDEU AS PERNAS NUM ATAQUE AÉREO, MAS ENCONTROU MANEIRA DE VOLTAR A ANDAR – E A SORRIR.
Rhana Natour NUM artigo publicado originalmente por The Atavist Magazine
FOTOGRAFADA POR Eman Mohammed
Dina Assaf estava sentada no seu carro à porta do aeroporto internacional O’Hare, em Chicago, a ver as portas deslizantes do terminal a abrir e a fechar, abrir e fechar. Ela e o marido, Baha, tentaram preparar-se para aquele momento e sentiam-se exaustos, mas no banco de trás as suas três filhas estavam entusiasmadas.
Sara, Salma e Sereen tinham marcado aquele dia – 17 de março de 2024 – nos seus calendários há semanas e estavam radiantes por finalmente ter chegado. Apertavam-se umas contra as outras para terem a melhor vista das portas, na esperança de serem as primeiras a ver a pessoa que iam buscar. Era uma rapariga jovem como elas – tinha feito 14 anos há apenas três dias – e, pelo que lhes tinham dito, era muito importante.
Chamava-se Layan Albaz, tinha o nariz achatado e a voz suave. O que as Assaf sabiam era sobretudo através de vídeos na Internet. Num deles, Layan descrevia como tinha perdido duas irmãs, uma sobrinha e um sobrinho num ataque aéreo israelita em Gaza. Deslocava-se em cadeira de rodas porque os ferimentos sofridos durante o ataque obrigaram os médicos a amputar-lhe as pernas. Noutro vídeo, pouco tempo depois do ataque aéreo, o rosto de Layan estava marcado por queimaduras. «Quero que me deem pernas verdadeiras», choramingou, segurando uma máscara de oxigénio com a mão. «Não quero pernas falsas.» Mas para Layan voltar a andar iria precisar de próteses e, para as obter, ia para os Estados Unidos. O Shriners Children’s Chicago, um hospital especializado em ortopedia pediátrica, proporcionava-lhe tratamento gratuito. E, apesar de serem estranhos, os Assaf acolhiam Layan na sua casa.
Sara, a filha mais velha, tinha 12 anos, por isso Dina e Baha tinham experiência em lidar com uma rapariga adolescente a passar por transformações. Mas Layan também estava a lidar com outra incapacidade: durante os meses do cerco israelita a Gaza, perdeu pessoas que amava e viu horrores que só um soldado na linha da frente poderia testemunhar. Dina apercebeu-se de que receber Layan não seria fácil. Ela esperava que fosse uma rapariga muito triste.
Mas quando Layan finalmente atravessou as portas do aeroporto e Baha a colocou no banco de trás com as suas filhas, Dina ficou chocada quando ela falou pela primeira vez.
«Que barulho é este?», perguntou Layan em árabe – não sabia falar uma palavra de inglês. A sua voz transparecia irritação.
«Dina só precisa de pôr o cinto de segurança», respondeu Baha.
«Bem, que raio estás a fazer?», gritou Layan, fixando os olhos em Dina. «Põe o raio da coisa. Estás a dar-me dores de cabeça.»
Os sorrisos ansiosos de Sara, Salma e Sereen transformaram-se em carrancas de preocupação. Em que é que me fui meter?, pensou Dina. Os Assaf começaram a perceber que a sua hóspede estava demasiado zangada para se sentir triste.
De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, pelo menos 47 mil palestinianos foram mortos desde 7 de outubro de 2023. O número de crianças mortas é de, pelo menos, 17 492.
Inúmeras crianças também ficaram amputadas nesta guerra, embora o número real ainda não seja conhecido.
O Dr. Ghassan Abu-Sittah, um cirurgião plástico e reconstrutivo especializado em traumas pediátricos sofridos em conflitos, passou mais de um mês em Gaza a trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras. «Durante esses quarenta e três dias, fiz mais amputações do que em vinte anos como cirurgião de guerra», disse-me Abu-Sittah, levando as mãos às têmporas durante uma videochamada a partir da sua casa em Londres.
Queria quantificar a situação e começou a recolher observações de outros cirurgiões que estiveram em Gaza. No verão de 2024, calculou que tenha havido um recorde de 4000 a 4500 amputados pediátricos em Gaza. Isto faz com que seja um dos mais rápidos e intensos eventos de incapacitação em massa de crianças nos nossos tempos. Relativamente à dimensão da população, Gaza poderá ficar com o maior número de crianças que perderam membros em qualquer guerra da história moderna.
A única esperança de recuperar alguma aparência de normalidade física requer que essas crianças saiam de casa. Como o único fabricante de próteses de Gaza e o centro de reabilitação foram destruídos num ataque aéreo, muitas famílias com crianças que perderam membros estão a tentar evacuá-las para que possam receber cuidados médicos no estrangeiro. As redes sociais estão a transbordar com os seus pedidos desesperados por países dispostos a receber amputados pediátricos. Apenas alguns conseguem o que equivale a um prémio da lotaria para os mortalmente azarados.
As crianças que conseguem encontrar uma saída embarcam em aviões para lugares distantes. No caso de Layan, esse lugar ficava a quase 10 mil quilómetros de tudo e de todos que conhecia.
Layan cresceu em Al-Qarara, um subúrbio da cidade de Khan Younis, sendo a décima de onze filhos. Muitos dos seus irmãos eram muito mais velhos e já tinham filhos; a mãe costumava tomar conta dos sobrinhos de Layan. O pai trabalhava na construção civil em Israel, um emprego relativamente bem remunerado para um palestiniano de Gaza, e ia a casa aos fins de semana. Layan e o irmão mais novo, Waseem, lutavam pela atenção do pai, contando-lhe as transgressões de cada um enquanto ele estava ausente.
Layan começou a usar um lenço na cabeça no quinto ano, por insistência dos seus rigorosos tios – homens que, nas suas palavras, «se imaginavam xeques». Não gostava que lhe dissessem o que fazer, razão pela qual se deu bem com a sua melhor amiga, Samaa. Ambas eram ousadas e travessas. Samaa não usava lenço na cabeça. Gostava de vestir t-shirts e calças justas e não tinha medo de devolver os olhares de desaprovação das pessoas por quem passava na rua.
Por vezes, Layan e Samaa iam a restaurantes na cidade de Gaza, onde ninguém as conhecia, e fingiam ser jovens adultas só para ver quem acreditava no estratagema. Faziam duelos de poesia para ver quem conseguia escrever uma estrofe melhor. Uma vez roubaram o livro de exercícios de um professor e distribuíram as respostas dos testes pelos colegas. Para formalizar o seu estatuto de melhores amigas, Samaa deu a Layan um colar com um sol como pendente; Samaa usou um com uma lua.
A 7 de outubro de 2023, Layan estava a caminho da escola quando uma barreira de foguetes perfurou o céu. Ela agarrou na bainha do vestido e correu para casa. Quando chegou, telefonou a Samaa. «Vais para a escola?», perguntou Layan. «Não, tenho demasiado medo», respondeu Samaa.
A casa de Layan ficava perto da fronteira com Israel e ela estava habituada a ficar com a irmã, que vivia no interior da Faixa de Gaza, sempre que havia hostilidades entre o Hamas e Israel. Foi o que fez no dia 7 de outubro, mas desta vez não havia volta a dar: após vários dias de violência, os pais de Layan receberam a notícia de que a sua casa tinha sido destruída. Em pouco tempo, juntamente com milhares de pessoas, refugiaram-se num abrigo do bairro que estava a transbordar.
Samaa visitou Layan no abrigo. Um dia, em meados de outubro, Samaa envolveu-se numa discussão com uma rapariga que fez um comentário malicioso sobre a roupa que trazia vestida. Layan implorou à amiga para esquecer o assunto, mas Samaa recusou. «Samaa estava irritada e, ao mesmo tempo, deprimida», disse Layan. «Ela queria descarregar toda aquela fúria em alguém.» Samaa agarrou a rapariga pelos ombros e empurrou-a contra uma parede; a mãe da rapariga interveio e deu uma bofetada a Samaa. Os membros da família de Layan impediram Samaa de retaliar. Outros juntaram-se para assistir. Ao recordar o incidente, Layan sorriu. A Samaa que ela conhecia recusava-se a recuar.
Quatro dias depois, uma bomba destruiu a casa de Samaa. Layan ligou várias vezes para o telemóvel da amiga, mas não obteve resposta. Dirigiu-se ao hospital e viu a mãe de Samaa, ainda viva, no corredor. Mas Samaa estava morta, juntamente com a maior parte da sua família.
Layan ouviu os médicos dizerem à mãe de Samaa que podia ver a filha uma última vez, mas avisaram-na para não o fazer porque o corpo de Samaa estava mutilado. Contudo, Layan queria ver a amiga. «Samaa era toda a minha vida», disse mais tarde. O que Layan viu não era um corpo; era um tronco, mãos. Mas o facto de Samaa não estar viva nove dias depois consolou-a: foi quando Layan perdeu as pernas. Ela sabia que Samaa teria morrido de desgosto se a visse naquele estado.
O ataque aéreo ocorreu às 04h00 do dia 27 de outubro. Layan estava com vários membros da família em casa da sua irmã Ikhlas, que tinha acabado de dar à luz um menino a quem deu o nome de Odeh, que significa «regressar» em árabe. Layan estava acordada na altura porque ia ajudar Khitam, outra das suas irmãs, a administrar medicamentos à sua sobrinha de 5 anos, Jenna. «Eu estava a ir na direção dela e o míssil atingiu-me e caí no chão», explicou Layan. Depois, um bloco de cimento caiu na sala – era tão grande que parecia preencher o espaço. «Khitam e Jenna morreram à minha frente, instantaneamente», disse Layan. «Até hoje tenho isso na mente. Mesmo à minha frente.»
Em seguida, outro míssil atingiu o prédio, e Layan sentiu-se voar pelo ar. Mais tarde, lembrar-se-ia de cair, cair, cair; o seu corpo caiu seis andares antes de chegar ao chão. O impacto terá sido o que lhe mutilou as pernas de um modo irreversível. Por todo o lado, estilhaços e destroços caíam como chuva.
Uma ambulância transportou Layan para o Hospital Nasser, onde apenas quarenta e oito horas antes tinha assistido ao nascimento de Odeh.
«Para os frigoríficos», ouviu Layan um médico dizer quando a levaram para dentro, referindo-se à morgue. «Não, não, ela ainda tem pulso», respondeu um paramédico.
«Mas está fraco.»
Na sala de operações, as pernas de Layan foram amputadas sem anestesia. Ela não sabia o que estava a acontecer, apenas sentia uma dor aguda. «Não tens piedade?», gritou. Foi mais tarde, quando estava deitada numa maca num elevador, que Layan viu o coto da perna direita e compreendeu. «Cortaram-me as pernas!», gritou. Foi devastador. Em árabe, a raiz da palavra «amputada», mabtur, pode significar «incompleta», como se a separação de algo tão essencial para uma pessoa significasse que não pode mais ser considerada inteira.
Do que se lembra a seguir é de acordar num quarto de hospital – os seus pais estavam lá, juntamente com outros familiares e amigos. «A primeira coisa que fiz foi perguntar pelo colar», relembra. «Era a única lembrança que tinha de Samaa.» Uma amiga correu para a sua cama. «Eu tenho-o, Layan», disse com um sorriso tranquilizador. «Dou-to assim que estiveres melhor.» Mais tarde, Layan descobriu que não era verdade; a amiga estava a tentar confortá-la. O colar perdeu-se nos escombros de Gaza, juntamente com o telemóvel de Layan, que continha fotografias e vídeos queridos de Samaa, da sua família, da sua vida antes da guerra.
Layan perguntou ao pai o que tinha acontecido a toda a gente que estava em casa quando os mísseis caíram. Ela não confiava na sua memória. Khitam e Jenna não eram os únicos que tinham morrido – Ikhlas e o bebé Odeh também.
Nessa noite, a mãe de Layan tentou lavar-lhe o cabelo, que estava coberto de sangue, sujidade e detritos. Depressa desistiu. Layan disse mais tarde: «As filhas dela foram mortas, os seus netos foram mortos. Quem poderia esperar que ela me lavasse o cabelo?» Em vez disso, a mãe cortou-o todo.
Nos meses que se seguiram, Layan foi submetida a um total de cinco cirurgias, apenas uma delas com anestesia. Lutou contra febre, infeções e problemas renais. Mas o que mais preocupava a família era a deterioração da sua saúde mental. Quando saiu do hospital Nasser, porque a sua cama era necessária devido a outra vaga de vítimas, os pais levaram-na de volta para o abrigo. Mas era evidente que Layan não estava em condições de estar perto de estranhos que olhavam para ela. Foi levada para casa dos avós, um edifício com vários andares cheio de familiares, amigos e vizinhos desalojados.
As coisas pioraram. Só o facto de ver pessoas a caminharem fazia com que Layan ficasse furiosa. Ver as crianças a correrem enquanto brincavam era demasiado difícil de suportar. O seu tio Ahmed tentou assumir o controlo da situação. «Ninguém fala com a Layan», ordenou às outras raparigas do edifício. «Deixem-na em paz.» Sempre que Layan queria apanhar ar no telhado, ele libertava o corredor e o elevador para que ela pudesse lá chegar sem obstáculos.
Quando uma criança perde um membro, o tempo é essencial. Quanto mais cedo receber cuidados especializados e reabilitação, melhores serão as hipóteses de se adaptar fisicamente a longo prazo. A irmã de Layan, Areej, que vive na Europa, enviou mensagens a pessoas que pudessem ajudar. Um parente distante de Layan, um jornalista em Gaza chamado Mohammad Alshaer, postou sobre ela no Instagram, onde tem mais de 100 mil seguidores.
Layan chamou de imediato a atenção de Steve Sosebee. O americano trabalhou como jornalista freelancer em Gaza na década de 1990, o que o inspirou a criar uma instituição de caridade chamada Palestine Children’s Relief Fund (PCRF) para transportar crianças doentes e feridas para os Estados Unidos para receberem cuidados médicos. No início de 2024, Steve Sosebee lançou a HEAL Palestina (HEAL significa Saúde, Educação, Ajuda e Liderança). Juntas, a PCRF e a HEAL estão a evacuar crianças feridas no conflito para países estrangeiros.
Este trabalho exige muito esforço, dinheiro e organização. A HEAL evacuou quinze crianças amputadas até agora (e muitas mais estão para vir, acrescentou a equipa). Layan foi admitida para tratamento no Shriners Children’s e viajou para o Egito com uma tia para obter um visto dos Estados Unidos. Chegou a Chicago cerca de cinco meses depois de ter perdido as pernas, determinada a mostrar aos estranhos com quem iria viver exatamente do que era feita.
Os Assaf são jordanos. Dina foi para os Estados Unidos quando tinha 5 anos e Baha aos 18, e conheceram-se numa aula de Inglês da faculdade comunitária. Baha, agora com 40 anos, trabalha como chefe de finanças numa concessionária de automóveis, enquanto Dina, de 38 anos, é dona de casa. Acompanharam de perto as notícias de Gaza e de Baha sobre a situação de Layan através de um amigo ligado à HEAL. Em família, concordaram unanimemente em acolher Layan.
Dina e Baha estavam determinados a fazer com que Layan se sentisse parte da sua família. Tinham um quarto vago no rés do chão da casa, que seria de acesso mais fácil para ela, mas optaram por colocá-la num quarto no andar de cima, onde dormiam todos, porque não queriam que se sentisse isolada. Também se certificaram de que o quarto de Layan tinha o mesmo tipo de cama, a mesma cómoda e os mesmos animais de peluche com os olhos arregalados que os quartos das filhas, do outro lado do corredor.
Na viagem de carro desde O’Hare, Layan anunciou que não queria ter nada a ver com os Assaf e que planeava ficar no quarto o dia todo. Quando viu onde a família vivia, uma grande casa de tijolo num subúrbio de Chicago, escarneceu que Dina e Baha deviam ser traficantes de droga para a poderem pagar. «Nós trabalhamos duramente», respondeu Dina. Layan deu uma gargalhada tão sonora que Dina ficou assustada.
Layan recusou-se a deixar que Baha a levasse para o quarto. Em vez disso, saiu da cadeira de rodas e subiu, usando os braços para balançar as ancas de um degrau para o outro com a destreza de uma ginasta. Quando Layan viu o quarto que Dina e Baha tinham preparado para ela, os seus olhos arregalaram-se. «É grande», comentou. Apesar de tudo, esboçou um sorriso.
Os Assaf não tardaram a compreender que Layan temia o tratamento para o qual tinha viajado de tão longe. Já tinha passado semanas dentro de um
hospital. Mas as instalações do Shriners Children’s são tão acolhedoras quanto possível: está decorado com murais luminosos e tem uma mesa de pingue-pongue. Há um «dia do super-herói», durante o qual os voluntários vestem-se a rigor e distribuem capas aos doentes.
Na sua primeira visita ao hospital, Layan conheceu os especialistas que iam tratar dela: o Dr. Jeffery Ackman, cirurgião ortopédico pediátrico; Shawn Malik, protético e ortopedista; e Angela Guerino, fisioterapeuta. A equipa trabalharia em conjunto para ajudar Layan a reabilitar-se, monitorizando todas as partes do seu corpo – músculos, ossos, nervos, pele – de modo a garantir que se adaptava à vida com pernas artificiais. Dina servia frequentemente como tradutora, traduzindo as instruções da equipa médica de inglês para árabe.
Há um lema comum aos ortopedistas pediátricos que trabalham com amputados: senta-te numa cadeira e começarás a parecer-te com uma cadeira. Layan tinha sido amputada e não fez fisioterapia, por isso as ancas estavam a ficar desalinhadas devido à tendência para se inclinar para um lado na cadeira de rodas. Sem intervenção, poderia desenvolver uma contratura da anca, um aperto do tecido articular que bloquearia para sempre o seu corpo numa posição não natural. Durante a reabilitação, Layan teria de fazer alongamentos com frequência, usar uma cinta para a anca e as costas para corrigir o alinhamento e meias de compressão para reduzir a inflamação no que restava das suas pernas.
Entretanto, cada uma das pernas de Layan apresentava desafios únicos. A perna esquerda tinha sido amputada acima do joelho, pelo que a prótese estaria equipada com uma articulação mecânica que ela teria de aprender a usar. Ela ainda tinha o joelho direito, mas a pele ao redor, com cicatrizes e possivelmente com estilhaços incrustados, dificultaria a instalação de uma prótese. Para Layan, aprender a andar de novo seria como dominar dois instrumentos musicais – e tocá-los ao mesmo tempo.
Layan era impaciente. Na sua primeira sessão de terapia, a equipa colocou-lhe uma prótese de controlo – pernas de aspeto robótico utilizadas para fins de treino – e ela tentou correr para uma passadeira no canto. «Literalmente, no primeiro dia», recorda Guerino. «Conhecia-a há cinco minutos.»
Mas Layan também aprendia depressa. Inicialmente, a equipa queria que ela ficasse no Shriners durante duas semanas de tratamento intensivo, após o que voltaria para casa dos Assaf durante alguns meses e iria ao hospital para consultas regulares. Mas ela portou-se tão bem na primeira semana, e ficou tão perturbada por ter de dormir no hospital, que a equipa decidiu que podia regressar mais cedo a casa dos Assaf – com uma condição: Dina teria de prometer que iria esconder as pernas de teste de Layan, porque ela corria o risco de se ferir gravemente se tentasse usá-las sem supervisão.
Quando Layan chegou a casa dos Assaf ao fim de uma semana no Shriners Children’s, Sara, Salma e Sereen estavam escondidas atrás da porta da frente. Elas pularam e atiraram confetes quando Dina entrou com Layan. Nessa noite, Dina levou as próteses para a cama, que ficaram entre ela e Baha.
Com o passar das semanas, a raiva que Layan dirigia à família de acolhimento foi-se atenuando. Dina respondia às suas explosões com naturalidade, e Layan passou a respeitar os limites que lhe eram impostos – mesmo quando a única palavra em inglês que parecia dominar era «não». Layan, Salma e Sara partilhavam o gosto pela maquilhagem e pelos cuidados com a pele. Sereen, que aos 5 anos era a mais nova dos Assaf, estava fascinada com a hóspede especial da família e tinha uma mochila com padrão de morangos onde guardava os pequenos objetos que Layan lhe dava, incluindo uma baleia para brincar e um frasco de slime cor-de-rosa.
Gaza nunca esteve longe da mente de Layan. Uma vez, partilhou com Dina um vídeo que via quando tinha saudades das irmãs. Mostrava o pai de Layan de pé sobre os seus corpos, que tinham acabado de ser retirados dos escombros e embrulhados em mortalhas brancas. Sem o telemóvel e o seu acervo de fotografias, aquela era a única maneira de Layan ver Khitam e Ikhlas.
Numa tarde de terça-feira, no início de abril, Layan recebeu um telefonema que a mergulhou de novo nos horrores da guerra: a prima telefonou-lhe para lhe dizer que o pai e o irmão mais velho, Karam, tinham sido mortos quando um avião israelita sobrevoou a tenda onde viviam e abriu fogo. Dina tentou consolar Layan, que chorava. «Quem vai tomar conta da minha família? Quem vai alimentar-nos?» O pai e Karam eram o ganha-pão e tomavam conta dos filhos dos familiares mortos.
Dina descobriu através da HEAL que, de facto, tinha sido outro irmão – Najee, de 17 anos – que tinha sido morto. E o seu pai ainda estava vivo, embora em estado crítico. Layan clamou a Deus, implorando para saber porque é que aquilo tinha acontecido. «Se alguém devia ter morrido, devia ter sido eu!»
Durante a semana seguinte, Layan teve medo de adormecer depois do pôr do sol. «Odeio a noite», confessou a Dina. Quando já era tarde e estava tudo calmo, Layan não conseguia parar de pensar. Pediu a Dina e a Baha que ficassem acordados com ela até de madrugada. Fizeram o seu melhor, jogando infinitas mãos de Skip-Bo e vendo episódios de uma telenovela turca até altas horas da noite. Só quando o sol nascia é que Layan finalmente dormia.
Quando contactei pela primeira vez os Assaf para entrevistar Layan, Baha descreveu-a como uma rapariga doce, embora Dina tenha
explicado que não devia «levar nada do que ela diz demasiado a peito». Layan disse-me ao telefone que estava disposta a encontrar-se comigo e com um fotógrafo originário de Gaza.
Dina recebeu-nos à porta da casa dos Assaf e depois Sara apareceu com um grande sorriso enquanto empurrava Layan na cadeira de rodas. Layan não estava a sorrir. Olhava para nós com um olhar fixo. «Pronto, vamos lá fazer isto», disse ela, revirando os olhos. Deu meia-volta e foi para a sala de estar.
Sentámo-nos com Dina no sofá enquanto Layan ditava como o dia iria decorrer. «Não quero que tirem fotografias que mostrem o meu ferimento», declarou. Aos 14 anos, a consciência em relação ao seu aspeto seria provavelmente intensa, independentemente do que acontecesse, devido às amputações. O seu rosto redondo e bonito fazia-me lembrar Selena Gomez. Um tradutor do hospital disse-lhe uma vez que se parecia com a estrela pop libanesa Maritta, o que pareceu deixar Layan feliz.
Layan disse-nos que não queria ser vista como um caso de caridade. «Eu tenho um futuro», insistiu em voz alta. «Não vou tolerar que, quando for grande, procurem o meu nome no Google e só apareçam fotografias minhas ferida.» Exigia que mantivesse algum controlo sobre as suas circunstâncias, que não fosse definida pela sua deficiência. Concordámos em seguir as regras de Layan.
No dia seguinte, fomos a casa dos Assaf para acompanhar Layan à fisioterapia. Layan não estava pronta. «Vamos, Layan», chamou Dina, olhando para o cimo das escadas. «Não é o teu casamento. Despacha-te.»
Quando Layan apareceu, tinha vestido um casaco azul-petróleo e calças capri a condizer. Dina colocou-lhe dois comprimidos grandes na palma da mão, supressores de nervos para aliviar a dor dos membros fantasma; por vezes, Layan sentia choques elétricos a percorrer os cotos das pernas, como se o seu corpo estivesse a chamar pelas partes que já não estavam lá.
No hospital, Layan deu um grande abraço a Angela Guerino, prolongando carinhosamente o nome da fisioterapeuta: «Annnngeeeelllaahhh.» Depois, com Dina a traduzir do árabe, salientou que Guerino tinha posto rímel naquele dia. Reparava sempre que Angela mudava a sua aparência.
«É o aniversário do meu marido», explicou aquela.
«Ooh la la!», respondeu Layan com uma piscadela de olho.
O principal objetivo da terapia era que Layan precisasse de cada vez menos apoio para andar com as próteses. Guerino ajudou-a a passar de um andarilho para duas muletas de antebraço, e depois apenas uma. Agora, Layan estava amarrada por uma corda a uma calha no teto, o que lhe permitia andar sozinha. Guerino segurava a outra extremidade da corda e puxava-a quando Layan tropeçava, ajudando-a a não cair no chão.
Shawn Malik, o protésico, observava cuidadosamente os movimentos de Layan. Por vezes, ajustava as próteses de teste; mantinha um registo das especificações do seu corpo para poder desenhar pernas personalizadas que estariam prontas dentro de algumas semanas.
A certa altura, Malik colocou um espelho de corpo inteiro à frente de Layan, que ficou animada ao ver o seu reflexo. Balançava as ancas a cada passo e murmurava uma canção em árabe que eu não conseguia ouvir.
Layan permitiu que o fotógrafo lhe tirasse fotografias quando estava presa às próteses, mas afastou a câmara quando Angela lhe fez alongamentos sem elas. Lembrei-me do vídeo angustiante em que ela agarrava a máscara de oxigénio e dizia que queria pernas verdadeiras e não próteses. Agora parecia que Layan queria que o mundo a visse de pé nas duas pernas, mesmo que fossem falsas. Ela queria parecer ereta, destemida, pronta para o que viesse a seguir.
A HEAL e as organizações que fazem um trabalho semelhante conseguem obter vistos americanos para crianças como Layan sob certas condições: não podem pedir asilo e devem deixar o país assim que o tratamento for concluído. Do ponto de vista do governo dos EUA, tais estipulações impedem que programas como o HEAL se tornem soluções alternativas para a imigração.
Durante anos, Steve Sosebee ficou bastante satisfeito com esse acordo. As crianças que recebiam tratamento especializado nos Estados Unidos geralmente conseguiam obter os cuidados de acompanhamento de que precisavam em casa – o sistema médico de Gaza era suficientemente robusto para isso. Mas restavam poucos hospitais em Gaza, e tinham de se concentrar nos cuidados imediatos para salvar vidas.
A ideia de que Gaza será reconstruída em breve, e sobretudo tendo em conta as necessidades de alguém como Layan, não é de todo realista. Abu-Sittah observa que Gaza terá de ser reinventada para acomodar uma geração de jovens amputados: «Precisa de ser um lugar diferente em termos de acesso, em termos de deficiência. As escolas que precisam de ser reconstruídas têm de ser completamente diferentes.»
A situação colocou uma dúvida horrível: e se Layan fosse para os EUA e aprendesse a andar de novo, mas voltasse para casa e não tivesse acesso aos cuidados de que precisava? Os amputados mais jovens geralmente precisam de procedimentos médicos adicionais e novas próteses à medida que o corpo cresce e se vai transformando. Numa consulta com o cirurgião ortopédico de Layan, o Dr. Ackman, Dina mostrou-se preocupada com a forma como Layan utilizaria as suas próteses, que se destinam a superfícies planas, se regressasse a Gaza, um local onde muitas infraestruturas civis foram destruídas. Ele disse-lhe que, infelizmente, as próteses de Layan iriam estragar-se muito mais depressa por causa dos escombros.
Quando visitei Chicago pela segunda vez, em junho, Layan cumprimentou-nos com um ligeiro sorriso enquanto descia as escadas da casa dos Assaf com as suas novas próteses. Eram as pernas que Malik tinha desenhado, e Layan iria usá-las pelo menos durante o próximo ano ou dois, até que o seu corpo em crescimento precisasse de novas. Tinham sido personalizadas para combinar com o seu tom de pele, com uma textura semelhante à pele humana.
Quando a equipa médica lhas deu, duas semanas antes, Layan não ficou entusiasmada. Ao contrário das próteses de teste, era suposto usá-las a toda a hora, o que era cansativo. Assim que chegou a casa do hospital colocou as pernas no quarto, onde permaneceram sem uso durante dias. Para a encorajar a praticar a marcha, Dina escondeu a cadeira de rodas.
Durante as sessões com Angela Guerino, Layan andava de um lado para o outro da sala. «O que me incomoda é a perna esquerda», explicou.
Para desbloquear o movimento da articulação, ela tinha de fazer pressão nos dedos dos pés da prótese. O problema de Layan era fazê-lo a cada passo, em particular quando a outra prótese não o exigia. Por enquanto, contentava-se em arrastar a perna esquerda sem dobrar o joelho. Decidiu também que estava pronta para usar outro tipo de calçado que não fossem ténis ortopédicos. Um par de sapatos rasos prateados estava a caminho pelo correio, e chegou mesmo a tempo das celebrações do Eid.
A última consulta médica de Layan em Chicago estava marcada para 3 de julho e, à medida que a data se aproximava, a ansiedade aumentava na casa dos Assaf. Por vezes, quando pensava em regressar a Gaza, a mente de Layan divagava para os locais mais sombrios. «Ouvi-a chorar e dizer coisas como: “Se não me mataram da primeira vez, vão matar-me da segunda”», conta Dina.
Dina diz que fará tudo o que estiver ao seu alcance para impedir que Layan regresse a Gaza, uma sombra do lugar que ela conheceu em tempos. «Arranjaremos advogados», diz Dina. «Pagaremos todo o dinheiro que for necessário.»
Desde o encontro difícil em O’Hare, Layan tornou-se uma presença constante na vida dos Assaf. Participou nas reuniões da família alargada e ficou a saber os seus nomes. Foi de férias com os Assaf para Miami. Continua a ser desafiadora, mas os seus comentários mordazes deram lugar a comentários espirituosos. O facto de ter passado a confiar suficientemente nos seus anfitriões para se mostrar vulnerável à frente deles foi algo que Dina valorizou muito. «Ela deposita toda a sua fé em nós», afirmou Dina. «Ela acredita em nós.»
Na minha última noite em Chicago, Baha e Dina acenderam a fogueira do quintal e as raparigas assaram marshmallows até serem distraídas: Steve Sereen andava de um lado para o outro numa prancha com rodas iluminadas por LED, enquanto Sara tentava convencer as irmãs e Layan a fazerem um tutorial de dança no TikTok. A certa altura, Layan largou as muletas que usava para se apoiar nas próteses e saltou em direção à fogueira. Então, apoiou uma das novas pernas na prancha de Sereen e olhou para Dina e Baha com um sorriso malicioso.
«Afasta-te já disso, Layan!», gritou Dina para o outro lado do pátio.
Layan riu-se e dirigiu-se para junto das outras raparigas, juntando-se a elas enquanto giravam e abanavam as ancas em frente ao ecrã de um telemóvel. Naquele momento, ela era apenas uma criança, a dançar.