A história pessoal de Steven Spielberg cruza-se, demasiadas vezes, com o que decidiu retratar nos seus filmes, mesmo antes de contar a história de família na produção mais pessoal de todas, Os Fabelmans, um dos melhores filmes de 2022. O realizador, verdadeiro Midas de Hollywood, já celebrou meio século de carreira e, sempre que fala de cinema, mesmo aos 76 anos, mantém o ar de miúdo deslumbrado com as histórias que conta.
Mário Augusto
Não fossem as marcas da idade, aquele seu olhar remete sempre para o rapazinho frágil daqueles que no liceu é alvo da chacota dos colegas de turma – aliás, mostra isso mesmo no filme – mas, ao mesmo tempo, tem nesse olhar de deslumbre o lado do malandreco que parece não fazer mal a uma mosca mas pela calada tem mil e uma ideias para filmes sempre a latejar na cabeça porque a sua vida é feita da paixão maior que é o cinema.
Poucos podem dar-se ao luxo de escrever e filmar os segredos de família, a sua história, como quem justifica de onde vem tanta paixão – Os Fabelmans é uma das produções que marcou o ano, o filme de que se fala.
Tal como Spielberg diz na apresentação que faz antes da projeção nos cinemas, em que agradece a presença de espectadores na sala escura, quis fazer uma homenagem à sua família e ao encanto que tem desde sempre pela sétima arte.
Curiosamente, ele tem tudo menos o ar do líder carismático, digo eu que já o entrevistei várias vezes, é como aquele nosso vizinho da frente que gosta de conversar, contar histórias, é o senhor Spielberg sempre a sonhar com mil e um filmes em simultâneo. Há uns anos – numa visita a Lisboa –, Jeffrey Katzenberg (eles foram sócios e fundadores da Dreamworks) dizia-me: «O Steven... só lhe digo, todo ele é cinema. Pensa tudo numa perspetiva cinematográfica, tudo o que conta tem um enquadramento, uma imagem associada. É incrível! Por cada filme que faz, tem sempre mais trinta para fazer.»
Spielberg é poderoso. Ocupa há muito os primeiros lugares no ranking dos nomes mais ricos e influentes da indústria do cinema, calcula-se que a sua fortuna ronde os 2,5 mil milhões de euros! Justifica-se o poder pela importância que teve na grande mudança da velha Hollywood porque, quando realizou Tubarão, já lá vão uns anos, foi em 1975, criou a fórmula do que hoje se designa como Blockbuster, ou seja, um filme que ultrapassa em pouco tempo a barreira dos 100 milhões de faturação.
UM BOM CONTADOR DE HISTÓRIAS
Nos encontros que já mantivemos, enquanto o entrevistava tornou-se irresistível focar o olhar no estado lastimável das suas unhas, sempre roídas até ao sabugo. Confidenciou-me na altura um seu colaborador que pelo aspeto das unhas se percebe melhor o empenho de Spielberg naquilo que faz e em que pé se encontram os seus projetos. Depois das estreias, e enquanto não começa a rodagem de outro filme, a ansiedade passa e as unhas lá vão crescendo um pouco… Apesar da larga experiência em liderar uma equipa de fiéis colaboradores, os mesmos que o acompanham desde há muitos filmes, diz que sofre muito com a pressão do processo de produção até ao momento de gritar ação, mas acrescenta que isso é bom, essa pressão é boa para a criatividade. O medo de falhar, ou não ficar como esperava, é a sua energia nuclear que depois de tudo pronto arrasta-nos para dentro de cada filme que faz, onde há sempre aquela magia que se agarra a quem vê para lá da simples projeção de contar uma história.
É assim desde os primeiros filmes. Quando rodou Tubarão, mesmo no início da carreira, os problemas eram tantos e as avarias do peixe mecânico tão constantes que teve que filmar muitas das cenas sem tubarão, usou a técnica que o cinema lhe ensinou, em particular Hitchcock, criar medo sem mostrar a razão do medo, a dinâmica de realização e montagem criou dessa forma um clássico de suspense, denegrindo para sempre a imagem dos tubarões.
Spielberg parece um tipo simples. Fala com paixão dos seus filmes e do cinema em geral. Há pelo menos 30 livros a contar a vida do miúdo franzino descendente de judeus emigrantes da Rússia que na escola não jogava futebol, preferindo esconder-se atrás de uma máquina de Super 8. Segundo o próprio, foi a falta de jeito do pai para as filmagens domésticas que desde cedo o atirou para detrás da câmara: «Desde miúdo que fazíamos campismo. Toda a família ia. Eu e as minhas irmãs adorávamos. Muitas vezes nem tendas levávamos. Dormíamos em sacos-cama, ao relento, a ver as estrelas. O meu pai gostava de filmar esses momentos, mas a verdade é que não tinha muita sensibilidade para a função. Por isso, logo a partir dos 12 anos assumi o lugar de realizador da família. Comecei a gostar de usar a imagem e passei a fazer pequenas realizações dos nossos passeios. As minhas irmãs ajudavam e a minha mãe estava sempre a incentivar-me.»
Foram as suas irmãs, por sinal, as primeiras atrizes desses filmes. Eram fitas de pequenas bobinas de 8 mm e pode dizer-se que a imaginação do rapaz já prenunciava outros voos. Numa dessas realizações pode ver-se o ataque de um animal à tenda de campismo. Nos fotogramas seguintes, convenientemente carregadas de ketchup, as manas Spielberg rebolam pelo chão. Porque se trata de Steven Spielberg, estas produções domésticas, às quais não faltavam os «efeitos especiais», são hoje documentos históricos. E por isso estão guardadas a sete chaves nos cofres do American Film Institute.
Confessa ter-se assustado ao mergulhar no escuro da sala de cinema quando foi assistir à projeção de um filme pela primeira vez. Tinha 5 anos. Pela mão do pai, foi ver O Maior Espectáculo do Mundo, realizado por Cecil B. DeMille. É com a recriação dessa memória que Os Fabelmans começa.
A AVENTURA DE UM PENETRA
Na escola, nunca figurou no quadro de honra. As médias escolares baixas foram decisivas, inclusive, para não ter conseguido entrar na universidade de cinema, onde tentou matricular-se por duas vezes. Contentou-se com um curso de língua inglesa numa universidade da Califórnia, mas foi congeminando uma estratégia para penetrar, literalmente, no mundo que sempre desejou. E acabou por fazê-lo, embora à socapa, pelo portão maior de um dos grandes estúdios de Hollywood. Como Os Fabelmans termina o relato de uma vida, no fim da adolescência, a história não consta do argumento, mas ele conta-a sempre que lhe pedem nas entrevistas, relata
a história que não é mesmo mito urbano de Hollywood.
«Ainda hoje não sei como me passou pela cabeça disfarçar-me de funcionário dos estúdios da Universal e andar por ali, comprei um passe de vários dias e lá entrei bem vestido, com uma pasta na mão, cheguei mesmo a ocupar um gabinete que se encontrava vazio. Nos primeiros dias ainda me perguntavam a que setor pertencia, mas depois já me conheciam. E o plano lá ia funcionando às mil maravilhas. Quando me descobriram, já eu tinha assistido à rodagem de algumas cenas de filmes como A Cortina Rasgada, de Hitchcock. Passei a maior parte do tempo nas salas de montagem e de dobragem. Tinha a sensação de estar na Disneylândia.»
Quando o apanharam, como é evidente foi expulso pela porta de trás, mas voltaria a entrar, dessa feita já com um contrato na mão. Um dos seus primeiros filmes foi Amblin (nome com que batizaria, mais tarde, a sua própria produtora), uma curta-metragem que conseguiu prémios em diversos festivais, entre os quais o de Veneza.
O diretor da Universal não perdeu tempo e propôs-lhe um contrato para o departamento de televisão. Com 21 anos, começou então uma carreira a sério, realizando episódios-piloto de séries de televisão que se tornaram famosas, de que é exemplo o policial Columbo, visto em Portugal na década de 1970, ou Night Gallery. Voltaria a realizar e a produzir televisão, muitos anos mais tarde, já depois da consagração planetária atingida com Amazing Stories.
Mais de metade dos 15 filmes mais rentáveis da história do cinema são dele: E.T., a trilogia de Indiana Jones, Encontros Imediatos do Terceiro Grau, Tubarão e os primeiros Parque Jurássico. Segundo contas recentes do Financial Times, a sua fortuna pessoal aumenta diariamente algo como 100 mil euros.
«Não sei explicar-lhe porque alguns dos meus filmes tiveram tanto sucesso. Nunca planeei alterar a minha visão das coisas e o modo de contar as minhas histórias só para alcançar este ou aquele público. Faço aquilo que quero fazer. E como gosto.»
UMA VISÃO DE FUTURO
Quando a Academia o consagrou, em 1994, com A Lista Schindler, o seu lugar na história do cinema estava definitivamente consolidado. Nesse dia, eu estava lá em reportagem, e cruzámo-nos no elevador que dava acesso ao palco do Shrine Auditorium. Ele segurava o Óscar como um miúdo que acaba de receber o brinquedo desejado. Estava nervoso e feliz. A pedido, simpaticamente deu-me um autógrafo, rabiscado ali mesmo na parede do elevador em movimento e a segurar a tampa da caneta com a boca. Voltaria à mesma festa dois anos depois para ganhar com O Resgate do Soldado Ryan. Dessa vez não nos cruzámos no elevador nos bastidores da cerimónia. Reencontrei Spielberg mais umas quantas vezes para entrevistas de promoção dos filmes, registo-lhe sempre o sorriso franco e partimos para a conversa, rapidamente porque o tempo é curto para tanta sabedoria e entusiamo de parte a parte e em dez minutos de entrevista não cabe tanta paixão pelos filmes. Ficou-me sempre aquela sensação de que podia passar um dia a ouvir as suas histórias. Cada filme tem sempre mil peripécias, alguns rituais de amizade como um brinde de champanhe no primeiro e no último take da rodagem.
Hoje já dá poucas entrevistas, é seletivo conforme a importância dos meios, continua a surpreender pelo entusiasmo e a clarividência de análise aos novos tempos da indústria. A propósito de Os Fabelmans, deu uma longa entrevista à revista TIME e ao jornal New York Times na qual se percebe bem a sua apreensão e cuidado de análise aos novos tempos e os caminhos que o cinema tradicional leva, cada vez mais digital, menos físico para sentir na mão o filme com atitude de cinéfilo colecionador.
«Começámos a acumular DVD de filmes em casa, tal como acumulávamos LP, como eu fazia quando era muito jovem. Bem... a minha coleção de filmes ultrapassou largamente a minha coleção de música. Mas hoje está tudo na nuvem e não temos mais espaço nas prateleiras para colocar os nossos filmes favoritos como parte do património cultural que nos inspirou a tornarmo-nos pessoas melhores e a encontrar valores que os filmes podem transmitir normalmente com mais rapidez que os próprios pais. Sinceramente, do que sinto falta é da cópia física. Sinto falta daquela relíquia que posso segurar na mão e colocar num leitor de Blu-ray. Mas talvez já seja um tipo antiquado. Tenho 76 anos. Sei como é ter a atitude de posse de algo que adoro. Sei como é ter, por exemplo, o LP da banda sonora de Lawrence da Arábia e, depois, anos mais tarde, ter mesmo o DVD do filme. Eu valorizo isso.»
Diz também que compreende e faz filmes (como produtor) para a distribuição em streaming sem passarem pelas salas de cinema. Uma nova realidade que pode estragar a magia mas permite outras oportunidades, mais público para uma obra que leva a história e a mensagem a muitas mais pessoas. Por isso, usa o exemplo do filme que realizou em 2017, The Post:
«Se me tivessem dado esse guião no pós-pandemia, não sei se teria preferido ter feito o filme para a Apple ou para a Netflix e tê-lo mostrado a milhões de pessoas. Era um filme que tinha uma mensagem, tinha algo a dizer a milhões de pessoas, e nós nunca íamos conseguir levar esses milhões de pessoas a salas de cinema suficientes para fazer esse tipo de diferença. Hoje as coisas mudaram o suficiente para me levar a dizer isso.»
PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA
Quem assim fala vai aos Óscares e poderá até ganhar outra vez, não só porque expôs os segredos de família, a paixão da mãe e a sua descoberta do cinema com Os Fabelmans, mas essencialmente porque está naquele pequeno grupo de septuagenários, outros já para lá dos oitenta, uma mão-cheia de realizadores entusiasmados que reinventaram a indústria nos anos 70 do século passado – George Lucas, Scorsese e Coppola, entre vários, não muitos, os que revolucionaram o sistema e salvaram Hollywood. Entre todos eles, com mais ou menos qualidade Spielberg é o mais versátil e com produção mais constante e de tal forma variada que nas 50 longas-metragens que realizou estão aventuras como Indiana Jones, fantasias como Ready Player One – Jogador 1, ficção científica como Guerra dos Mundos, Relatório Minoritário, A.I. Inteligência Artificial e, claro, os clássicos E.T. e Encontros Imediatos do Terceiro Grau, mas cabe também no curriculum obras como Parque Jurássico, Hook, O Resgate do Soldado Ryan e a obra-prima A Lista de Schindler.
Por altura da estreia de Ready Player One – Jogador 1 numa conferência de imprensa fizeram-lhe uma pergunta curiosa e que eu sublinhei no meu bloco de notas para não esquecer. (Tenho o «vício» de sublinhar e guardar tudo o que leio e me agrada, ajuda sempre em futuras entrevistas.) Perguntaram-lhe porque ainda se encantava com os filmes. «Porque gosto de me perder. E de perder o controlo. E quanto melhor o filme, mais perco esse controlo. Consigo entrar no outro lado como uma personagem, é como um processo imersivo que adoro. Se tudo for bom o suficiente, esqueço quem sou e onde estou. Essa é a minha definição de uma grande história, aquela que se nos apresenta por dentro do ecrã.»
Há uma frase que me ficou dessa última aventura de ficção que realizou, Ready Player One: «Aceite a sua realidade ou lute por uma melhor.» Esta também a tenho anotada no bloco de todos os dias. Dá sempre jeito recordar ou citar os melhores. Estamos sempre a aprender.
Depois de várias nomeações, em 1994 Spielberg ganhou finalmente o Óscar de Melhor Filme e Melhor Realizador com A Lista de Schindler.
Com Tubarão, Hollywood mudou a forma como se estreavam os filmes, foi o primeiro Blockbuster.
O jovem Spielberg chegou aos estúdios Universal para mudar o cinema. Aqui aos 18 anos, na realização de uma das suas curtas-metragens.
Um dos momentos da rodagem de uma maquete para o filme Os Salteadores da Arca Perdida.
Parque Jurássico mal estreou e ocupou lugar entre os filmes mais rentáveis de sempre.
A Lista de Schindler continua a ser um dos filmes mais impressionantes sobre o Holocausto. Foi rodado na Polónia em 1993.
Há imagens que fazem parte do imaginário coletivo. Esta é uma delas, do filme E.T.