O milagre de Natal no cinema

 

Mário Augusto


Antes de “Sozinho em casa” ser o filme de todos os Natais na televisão, ou termos a Maria Von Trapp a cantar nas colinas com a “Musica no Coração”, houve um outro filme que na América, foi durante décadas a razão para a família se juntar à volta da televisão na noite de Natal. A história já todos conheciam, mas emocionavam-se sempre nas mesmas cenas e repetiam os diálogos que já sabiam de cor. Há uma geração de americanos que no Natal, nunca falhava a reposição na TV deste clássico. 

 

James Stewart considerava que a interpretação de George Bailey, homem bondoso e idealista, tinha sido a melhor da sua carreira. Curiosamente, o entusiasmo do público pelo filme só despertou 30 anos depois da estreia, com as sucessivas reposições televisivas a partir de 1974.

O realizador Frank Capra, repetia nas entrevistas que era o seu melhor filme, acrescentava até: - “Ouso dizer que é o melhor filme da história. Não o fiz para críticos enfadonhos nem para intelectuais pedantes. Fi-lo para pessoas simples como eu…”

 

Faz agora precisamente 80 anos, que o realizador teve contacto pela primeira vez com a história que andava perdida nas gavetas dos estúdios. Tomou conta do que já estava escrito e deu-lhe o seu toque para na primavera de 1946 começar a filmar o que é hoje um clássico eterno, um dos mais belos filmes do espirito natalicio. 

Recuando à origem da história, tudo começou com um pequeno conto que o escritor Philip van Doren Stern publicou em 1938. Como explicou o autor num artigo do Herald Tribune, aquando da estreia do filme, a ideia surgiu a 12 de fevereiro de 1938, lembrando o autor: — “Nessa manhã, tive uma ideia para uma narrativa enquanto fazia a barba. A história apareceu completa, do início ao fim (…). Depois de terminar, sentei-me e escrevi um esboço de duas páginas, coloquei a data e deixei-o ficar mais de um ano. Chamei-lhe «The Greatest Gift» (O Maior Presente).”

As várias publicações e revistas com quem colaborava recusaram a história. Era curta e, sem a conseguir vender, Stern decidiu transformá-la em mensagem de Natal para os amigos. Mandou imprimir um caderno de vinte páginas e enviou duzentas cópias pelo correio como prendinha de Natal para os amigos.

É uma história simples que se resume em meia dúzia de linhas: no dia de Natal, um banqueiro derrotado, sem saída para a sua crise depois de anos de luta contra um grande magnata financeiro, em desespero suicida, no meio de um nevão, ele prepara-se para se atirar de uma ponte. No último momento é salvo pelo seu anjo da guarda, que lhe mostra como seria o mundo se ele nunca tivesse existido. Um homem perdido que vai a partir daí descobrir o valor da solidariedade.

Foi a atitude altruísta de publicar no Natal para oferecer aos amigos que deu ao conto uma reviravolta de bastidores que mais parece digna de argumento de Hollywood.

As vinte páginas desse conto, impressas para oferta de Natal, chegaram às mãos de uma agente de Hollywood. Muito emocionada com aquela leitura breve, mas cheia de sentido, acabou por pediu autorização ao autor para obter mais exemplares e fazê-los chegar aos estúdios; quando menos esperava, a história rejeitada pelas revistas acabaria comprada pela RKO por um valor exagerado para a época: dez mil dólares.

Aí começou a segunda fase da aventura. Os produtores imaginavam Cary Grant e Jean Arthur como protagonistas, mas eram estrelas demasiado grandes para um projeto pensado como filme modesto de baixo orçamento.

O primeiro argumento não agradou à equipa. Contrataram um novo argumentista e voltaram a não gostar. Ainda foi chamado outro, o terceiro, mas nenhum acertava no tom narrativo. O conto era curto para sustentar uma longa-metragem e as propostas de desenvolvimento não seduziam ninguém, nem mesmo o autor original. Com contratempos e versões sucessivas, passou um ano e o projeto ia ficando para trás nas prioridades dos estúdios RKO.

 

O regresso de Capra

 

A Segunda Guerra Mundial tinha terminado. Vários realizadores vestiram farda e ganharam patentes militares; Frank Capra foi um deles. Durante cinco anos foi o coronel Capra e regressava a uma Hollywood diferente e já sem uniforme. A sua ideia era fazer filmes que devolvessem esperança aos americanos que saíam de uma grande tragédia. Quando nos estúdios lhe falaram da história e das peripécias do conto “The Greatest Gift”, ele decidiu comprar os direitos para que fosse o primeiro projeto da sua nova produtora independente, a Liberty Films, fundada com William Wyler, George Stevens e Sam Briskin. A RKO ficaria com os direitos de distribuição, mas Capra teria total controlo criativo do argumento, da realização e da produção. Depois da guerra, em que rodou vários documentários, estava ansioso por voltar a pegar numa boa história dramática e apesar de ter uma boa equipa de argumentistas, quis envolver-se em todas as fases do desenvolvimento.

A sua ideia, como conta na volumosa, mas fascinante autobiografia, era guardar o núcleo narrativo do conto original para a parte final e escrever toda a história anterior que conduzia ao desespero de George Bailey.

A narrativa começa no Céu, destino das orações dos habitantes da cidade imaginária Bedford Falls, muito comovidos pela atitude e ansiedade de Bailey; perante tantas súplicas, Deus decide fazer uma pausa no tempo e envia um anjo da guarda para ajudá-lo. Antes, porém, sugere que o anjo reveja os trinta anos anteriores da vida do seu protegido.

É um enredo simples que se transforma numa parábola poderosa sobre solidariedade, sacrifício individual e sentido de comunidade. Capra constrói um hino à dignidade humana, num filme comovente.

Foi um longo processo e muito discutido para chegarem a um consenso narrativo e tornar mais verosímil e envolvente a relação entre o Anjo e George Bailey. Foram meses de trabalho para lapidar uma história aparentemente simples, mas carregada de simbolismo e com a marca inconfundível do cinema de Capra.

 

Uma produção arrojada

 

Desde o primeiro contacto com o conto de Philip Stern, o realizador sabia que os estúdios queriam Cary Grant como protagonista. No entanto, não era essa a sua escolha. Eram amigos, já tinham trabalhado juntos, mas entendia que, apesar de ser um grande ator e uma estrela, parecia-lhe demasiado divertido para a estrutura melodramática que a história pedia.

Pensou logo noutro amigo que, tal como ele, se voluntariara para a guerra: o tenente James Stewart. Tinham já trabalhado em dois filmes e Stewart não hesitou em aceitar o convite. Também para ele era um regresso a Hollywood depois de cinco anos na força aérea como piloto. A carga emocional da personagem refletia a sua própria experiência e queria provar que estava melhor ainda do que quando partira para a guerra.

O elenco que faltava obrigou a grandes negociações com a MGM, estúdios que tinham contrato com Donna Reed para o papel de Mary Hatch, esposa de Bailey. Já o Lionel Barrymore, o reconhecido veterano, aceitou interpretar o vilão sem sequer ler o argumento.

No início, Capra não estava totalmente confiante. Tinham passado cinco longos anos de ausência, mas com entusiasmo e mestria, em apenas 54 dias, entre abril e julho de 1946, ele demonstrou como poucos que sabia tirar o melhor de cada elemento da sua equipa.

James Stewart oferece um encanto único, uma interpretação que a critica considera uma das mais geniais do cinema americano. Por sua vez, Capra mostrou-se inovador e perfeccionista na criação de espaços e ambientes que tornam a história ainda mais especial.

O cenário de Bedford Falls foi um grande desafio: uma das maiores cidades-cenário já construídas em Hollywood, ocupava quatro hectares. Em vez de recorrer a fachadas fragmentadas, Capra mandou erguer uma cidade completa, com ruas, lojas funcionais, árvores transplantadas e até um sistema hidráulico para simular o degelo. Bedford Falls parecia existir para lá do ecrã.

A neve que é quase uma personagem viva, foi outra invenção que marcou a história técnica do cinema. Até então, usavam-se flocos de milho pintados, sabão em pó ou gesso: materiais barulhentos e incómodos. Capra exigiu neve convincente e silenciosa para poder captar som direto. O departamento de efeitos da RKO criou uma mistura de espuma carbónica de extintor, gesso e água, que resultou em neve realista, prática e silenciosa. Não foi o primeiro filme a usar neve artificial, mas a técnica tornou-se referência e valeu menção honrosa da Academia pelo realismo obtido.

O som direto foi outra aposta ousada. Enquanto muitos ainda preferiam dobrar os diálogos em estúdio, Capra quis captar vozes e ambientes no local das filmagens, aumentando a naturalidade das cenas.

 

Uma falha Burocrática fez o milagre

 

“It´s Wonderful Life” estreou a 20 de dezembro de 1946, mas apenas em Nova Iorque, a RKO mandou um convite em formato de postal de Natal. Ao resto da América chegou depois a 7 de janeiro de 1947, coincidindo com a temporada dos prémios tentando atrair maior atenção da crítica. Em Portugal estreou no Politeama a 30 de novembro do mesmo ano.

Com um investimento de 3,18 milhões — um orçamento elevado para a época — e apesar da ambição do projeto, o filme não recuperou o custo. No primeiro ano de exibição acumulou um prejuízo de 525 mil dólares. A Liberty Films esteve à beira da falência e a parceria com a RKO terminou ali.

Durante anos quase ninguém mais falou do filme, até que em 1974 ocorreu uma falha técnica no procedimento da renovação dos direitos de copyright, levando à sua redescoberta. A lei americana obrigava os estúdios a renovar o registo dos filmes ao fim de 28 anos. A Republic Pictures, era na altura a detentora dos direitos, aquele era um filme já emprateleirado, talvez por isso alguém se esqueceu de renovar a licença e a obra entrou automaticamente em domínio público.

Resultado: durante quase duas décadas qualquer estação de televisão podia exibi-lo sem pagar nada a ninguém. Essa borla de exibição massiva, sobretudo na semana do Natal, recuperou o filme como clássico televisivo muito popular. Tornou-se uma tradição que, na véspera de Natal, famílias inteiras americanas se reunissem em frente à TV para rever de novo “Do Céu caiu uma Estrela”.

Já nos anos 1990, a Paramount e outras grandes produtoras conseguiram recuperar parte dos direitos, não pelo copyright original que se perdera para sempre, mas através dos direitos do argumento, da música e do restauro da obra clássica.

O filme foi depois colorido digitalmente em 1986 por uma empresa de Ted Turner, que na altura investia na colorização de clássicos a preto e branco para televisão. Mas o original a preto e branco continua a ser insuperável. “Do céu caiu uma estrela” guarda ainda hoje a mesma magia, uma lição de humanidade que o tempo transformou em clássico inesquecível e um realizador muito especial fez dele uma mensagem de bondade e carinho. A vida dele também dava um bom filme.

 

O homem do sonho americano


A vida de Frank Capra parece saída de uma doas suas produções. Filho de imigrantes sicilianos pobres, nasceu em 1897 numa aldeia perto de Palermo. Chegou aos Estados Unidos com seis anos, num navio a abarrotar de esperança. Cresceu em Los Angeles, ainda jovem foi vendedor de jornais, trabalhava para ajudar a família e pagar a universidade, formando-se em engenharia química. Depois de servir na Primeira Guerra Mundial, começou a trabalhar em Hollywood, escrevendo humor e argumentos para curtas-metragens. Foi com o comediante Harry Langdon que deu os primeiros passos como realizador, rapidamente se tornou uma das vozes mais originais do cinema americano.

Nos anos 1930, em plena Grande Depressão, compreendeu melhor do que ninguém o que o público precisava de ver: esperança. Criou um estilo inconfundível, onde homens simples enfrentam injustiças e sistemas corruptos e triunfam pela força da integridade. Filmes que pareciam contos de fadas morais, mas que falavam diretamente à alma de uma América ferida.

O primeiro grande sucesso foi “Aconteceu Naquela Noite” (1934), com Clark Gable e Claudette Colbert. Uma comédia romântica que conquistou os cinco Óscares principais e inaugurou o que passou a designar-se como o “espírito Capra”: humor, ternura, crítica social e fé na bondade humana. Filmes como “Peço a Palavra” mostravam que era capaz de fazer o retrato de um idealismo em que acreditava. Capra dizia que não filmava sobre o povo, mas para o povo e essa distinção tornava os seus filmes tão universais quanto íntimos.

Terminada a guerra onde produziu documentários, regressou ao cinema de ficção mas o mundo tinha mudado e o cinema também. O idealismo puro dos anos 1930 já parecia desajustado à América da Guerra Fria. Mesmo assim, em 1946, filmou esta sua obra mais pessoal: “It’s a Wonderful Life” (“Do Céu Caiu uma Estrela”). Filme que com o passar dos anos se transformou num símbolo universal de esperança.

Frank Capra foi um contador de parábolas modernas um homem bom que acreditava que o cinema podia ser uma força moral e inspiradora.

Uma vez, perguntaram-lhe o segredo do seu sucesso. Respondeu sem hesitar: “Eu acredito nas pessoas. E o cinema é a melhor forma de dizer isso.”

Capra como emigrante personificou a concretização do sonho americano, adotou o país e filmou-o como queria que a América fosse: justa, solidária, generosa. Alguém que fez desse sonho a sua arte. O engenheiro químico que se tornou um poeta do ecrã. Como dizia muitas vezes : Se eu consegui, todos conseguem, basta sonhar e ser homem bom”.