A Onda Perfeita de Sarah
AOS 18 ANOS, A JOVEM SURFISTA PERDEU AS MÃOS E OS PÉS. DESDE ENTÃO, COM A SUA FAMÍLIA, TEM LUTADO PARA VOLTAR AO TOPO DESTE DESPORTO E DAR VISIBILIDADE AOS AMPUTADOS.
Maria José Carmona
O céu não poderia estar mais limpo, é um azul sem nuances.
Está calor, mas é um calor quente e agradável. A temperatura ronda os 20º C, na água estão 16. O vento sopra imperativo – a cerca de 25 quilómetros por hora, levantando ondas de um metro de altura. Ao longe, Sarah observa-as, fazendo cálculos. Um, dois, três... dez segundos. É o tempo entre uma onda e a seguinte. Um ritmo oculto, a harmonia que flui silenciosamente sob a força bruta do mar.
Sarah tira do carro a prancha, o fato de neopreno, o colete salva-vidas, um creme protetor verde brilhante que aplica como tinta de guerra no nariz e nas bochechas. Com tudo pronto, Sarah «desmonta-se». Primeiro tira a mão direita até ao cotovelo, depois a mão esquerda. A seguir senta-se, inclina-se para a frente, o vento agita à volta do seu pescoço um pendente de madeira escura – uma prancha de surf feita de pau-rosa, a madeira sagrada. Sarah desaperta os fechos, desenrola a meia, levanta a coxa, remove os pés. Primeiro o direito, depois o esquerdo. Abaixo dos joelhos só resta o ar.
As ondas estão à espera.
AMPUTADA QUATRO VEZES Em 2021, mais de 32 500 pessoas foram tratadas por amputação em Espanha, de acordo com a Federação Espanhola de Ortoprotésicos e Prostéticos (FEDOP). Setenta por cento das amputações estão geralmente relacionadas com a diabetes, 20% como resultado de um acidente e os restantes 10% devem-se a outros motivos como, por exemplo, uma infeção.
A 23 de julho de 2018, Sarah Almagro, uma aluna do ensino secundário prestes a entrar na Faculdade de Direito, desportista que gostava de futebol, ténis, basquetebol, judo e surf, começou a sentir-se mal: vómitos, febres, dores de barriga. No centro de saúde de Marbella (Málaga), mandaram-na para casa. Disseram-lhe que era uma gastroenterite, mas os pais não ficaram convencidos. Com 41º C de febre, levaram-na ao hospital. Aí recebeu o diagnóstico correto: infeção causada pelo meningococo «Y», um tipo de meningite que até então estava fora do radar das autoridades de saúde.
A sua incidência sempre foi baixa, e só em 2014, sobretudo devido ao
aumento das viagens internacionais, as taxas começaram a subir, em particular entre os adolescentes, os principais transmissores da bactéria. Muitos portadores são assintomáticos e propagam-na, sem saber, através das vias respiratórias – basta um espirro ou um talher partilhado; outros desenvolvem a doença rapidamente.
Sarah desenvolveu septicemia. O seu corpo reagiu violentamente à infeção, causando a falência de vários órgãos. Esteve em coma durante dez dias. Os antibióticos salvaram-lhe a vida, mas causaram-lhe danos irreversíveis no sistema vascular. «Veem-se as consequências mas não se assume o que está para vir. Vimos que as pontas dos seus dedos ficaram pretas, tocámos-lhe nas mãos e sentimos o frio. Pensámos que ela ia perder uma falange, mas nunca a este nível», diz Ismael Almagro, o pai de Sarah. O casal de classe média-alta, ele economista e a mulher, Silvia Vallejo, professora de Inglês, foram os primeiros a repetir estas palavras: amputação quádrupla.
Depois, tiveram de as repetir à filha Sarah, de 18 anos, prestes a tirar a carta de condução. «Não sei o que lhe disse, as palavras fluíram, vi como reagiu mas o impacto foi enorme», diz Ismael. Daquilo que se lembra é do que disse a seguir: «Sarah, garanto-te que vou fazer com que voltes a ter uma vida pelo menos igual à que tinhas.»
A primeira prótese da história foi descoberta numa múmia egípcia: um dedo grande do pé feito de osso e madeira. Mais tarde, foi utilizado ferro, aço e alumínio. Com a Segunda Guerra Mundial apareceu a prótese moderna, concebida não só para esconder o membro perdido mas também para recuperar a sua função. Foram incorporados microprocessadores e robótica. Atualmente, existem próteses biónicas capazes de reproduzir um movimento surpreendentemente humano. A sensação de naturalidade, dizem os especialistas, é muito importante para evitar a rejeição psicológica. Mas em Espanha estas próteses não são financiadas pela Segurança Social.
«A mão que nos mostraram era uma pinça, como uma pinça de churrasco», afirma Ismael, referindo-se ao catálogo público de próteses. As suas próteses tentam simular a mão humana, mas o brilho artificial do silicone, a falta de jeito dos movimentos e aquela postura rígida e inerte não enganam ninguém. Estas são as únicas próteses fornecidas pelo Estado. A outra, a biónica – capaz de articular o pulso, agarrar e apertar com precisão, gesticular e exprimir emoções –, custa 85 mil euros. «Oitenta e cinco mil euros por cada mão», explica Ismael.
O MEU NOVO CORPO Sarah mostra as mãos: 337 peças mecânicas feitas de metal, fibra de carbono, plástico e circuitos. Um membro 100% robótico com um design anatómico 100% humano. Pequenos motores em cada um dos dedos permitem um movimento preciso e fluido, seja para abrir uma garrafa, atar os atacadores ou escrever. Está ligado aos antebraços, onde os sensores captam os impulsos nervosos do cérebro e os transformam em movimento. Sarah Almagro foi a primeira pessoa na Europa a usar duas mãos biónicas multiarticuladas, que hoje a aproximam – se não em todos os aspetos, pelo menos bastante – da sua vida anterior.
«Sinto-me confortável, sinto-as como parte do meu corpo. Apercebo-me disso porque quando estou a falar faço gestos», diz Sarah, movendo as mãos livremente. Quando o faz, ouve-se um som mecânico sibilante, o equivalente robótico do esmagar de ossos. «Não tem sido muito difícil para mim aprender. Desde que fui amputada, tenho andado a praticar. Com o coto, costumava fazer o exercício de abrir e fechar a mão, para mexer os dedos, mesmo sem os ter.»
Os pés prostéticos são feitos de fibra de carbono e, ao contrário das mãos, não são biónicos – ela não precisa deles porque ainda tem os joelhos. No início, estavam na fase de acasalamento. O terreno instável, as encostas, eram-lhe difíceis e ela cansava-se muito ao andar. «Estive sentada numa cadeira de rodas durante três anos, a minha capacidade pulmonar era nula, mas pouco a pouco fui conseguindo andar mais. Estava a estabelecer pequenos objetivos para mim.»
As quatro próteses, o seu novo corpo, tiveram um preço: 200 mil euros. Uma quantia incomportável para Ismael e Sílvia. «Mesmo que tivéssemos vendido a casa, era impossível arranjar todo esse dinheiro. Os meus pais disseram-me: “Não podemos fazê-lo sozinhos. Tens de ir a público e pedir ajuda à sociedade.”» E foi assim que se tornou conhecida. Ela, que poucos meses antes não levantava a mão na aula por vergonha, criou um perfil no Instagram e, a partir do hospital, começou a relatar a sua vida após a amputação, dia após dia. Também foi a estações de rádio e de televisão, presidiu a galas e eventos de caridade. O seu nome estava estampado nos táxis e lojas por toda a cidade de Marbella. «Palante con Sarah» [Vá em frente com Sarah] pendurado nas montras, o lema da associação que a família e os amigos criaram para angariar fundos: a associação «Somos tu ola» (Somos a tua onda).
Alguns meses mais tarde, não havia ninguém na Costa del Sol que não conhecesse a história daquela jovem do Sul que tinha perdido as mãos e os pés de um dia para o outro e que estava afastada do mar. Hoje, Sarah anda e faz tudo graças a essa «onda» de pessoas. Perdeu quatro membros, mas ganhou centenas. No início de 2021, receberia as quatro próteses pela primeira vez e para sempre, mas até chegar a esse ponto o caminho seria longo, uma eternidade.
AS DUAS LUTAS DOS ALMAGRO Antes da operação de Sarah, Ismael foi visitar um ortoprotésico que há trinta anos monta, testa e calibra os pés e os braços de centenas de amputados em Espanha. O homem recordou-lhe que o mais importante quando se amputa é saber onde se deve fazer o corte. A escolha do nível correto para a amputação determinará se o futuro amputado se adaptará, ou não, à prótese. Quando Ismael foi ter com o cirurgião para lhe dar esta informação, o ponto exato onde, segundo o especialista, era melhor fazer o corte, o cirurgião respondeu-lhe com uma frase que Ismael nunca mais esqueceria: «Eu corto onde não há vida, os outros fazem o resto.»
«Para mim, foi de uma falta de humanidade impressionante», lamenta o pai de Sarah. Há muito tempo que as associações de amputados denunciam a falta de especialistas e de formação, mas também de psicólogos, de terapias de reabilitação e de próteses concebidas para alguém que não seja um diabético de 70 anos, pensadas para jovens ansiosos por abanar os novos corpos, por levá-los ao limite.
Um ano após a operação, Sarah teve de ser amputada duas vezes. «Quando tentava pôr as próteses, chorava com dores», recorda. A tudo isto juntaram-se visitas contínuas ao hospital, infeções, enxertos de pele, bactérias, diabetes, o transplante de um rim. «Foi um ciclo de coisas negativas durante três anos. Toda a gente se ia abaixo. Tive sorte por ter a minha família.»
Enquanto Sarah estava a tentar ultrapassar uma recuperação interminável começou a segunda luta dos Almagro, a luta de Ismael: «Criei um compromisso com a minha filha e um dever para com a sociedade. Se a sociedade me dá as próteses da Sarah, tenho de as pagar.»
Tudo começou com as vacinas. Em janeiro de 2019, Ismael escreveu ao ministro da Saúde espanhol solicitando a inclusão da vacina tetravalente contra a meningite, incluindo os serótipos A, C, W e Y, no calendário de vacinação. A 15 de março, foi recebido pelo então secretário-geral da Saúde, que confirmou a aprovação da inclusão da vacina no dia anterior. «Com isso resolvido, tínhamos de avançar com as próteses», diz Ismael. Um desafio muito mais difícil.
Levantaram três questões: a atualização do catálogo público de próteses, que cada caso fosse estudado individualmente e que, no caso das próteses mais caras, a administração financiasse pelo menos parte delas para que não houvesse mais amputados a pedir dinheiro em público. Foram meses de cartas e e-mails, reuniões, telefonemas para o Ministério e para a Junta da Andaluzia, meses de insistência obstinada. «Não tive um único dia de descanso. O dia em que mais dormi foram três ou quatro horas.» O catálogo está atualizado desde 2022.
Depois de todas essas noites sem dormir, Ismael obteve o compromisso de que seria construído o primeiro centro especializado em amputação da região, ainda não cumprido, mas que está convencido de que finalmente acontecerá.
«Somos uma equipa de quatro», insiste. «Obviamente, a personagem principal é Sarah, mas depois existo eu, que luto com toda a gente, Silvia, que é responsável pela organização de eventos para a associação, e Alejandro, o irmão da Sarah, que, embora menos visível, tem sido um apoio. Todos nós aprendemos muito ao longo destes anos.»
UM SONHO OLÍMPICO Sarah aprendeu a nadar duas vezes. Em ambas as vezes foi ensinada pelo pai. «Depois de ter sido amputada disseram-nos que não podia, mas no espaço de uma semana já dominava os quatro estilos», explica. É uma constante na sua vida. Quando era criança, disseram-lhe que não podia jogar futebol e ela jogou, disseram-lhe que não podia andar depois de tanto tempo numa cadeira de rodas e ela andou, disseram-lhe que as mãos biónicas podiam não ser feitas para ela e, em pouco tempo, estava a fazer aviões de papel e a desembrulhar doces com os seus dedos finos de metal.
Sarah é tenaz e competitiva, não gosta de ser superprotegida nem que olhem para ela com pena. Tem consciência de que o seu corpo chama a atenção. «As crianças são as primeiras a dizer: “Olha, mãe, ela não tem braços nem pernas!”» Ela tem prazer em dizer que costumava ter mãos e pés, mas que essas coisas nunca devem ser tomadas como garantidas, ou que muitas vezes sente dores devido aos joanetes que não tem – o famoso membro fantasma – porque o cérebro ainda está convencido de que os seus pés estão lá. Prefere que lhe façam mil perguntas do que desviem o olhar.
Há uma frase que os surfistas dizem – «Somos todos iguais em frente a uma onda» – e nos últimos anos Sarah está determinada a prová-lo. Na primavera de 2021, regressou não só à natação, mas também a um dos seus desportos favoritos. Na sua modalidade adaptada, o surf é praticado deitado na prancha – semelhante ao bodyboard – e com o apoio de um caddie, uma pessoa que ajuda o surfista. «Eu sou as mãos e os pés dela, encarrego-me de a levar até ao pico da onda, depois ela vai sozinha», dizia Miguel Sampalo, antigo caddy de Sarah. E tinha toda a razão: basta olhar para ela no mar, junto à rebentação, protegida com um capacete branco, presa à prancha, pacientemente à espera.
Passam sete, oito, nove, dez segundos desde a última onda. O mar salta sobre as rochas, lança-se para a frente. Uma centelha branca cruza o horizonte, deslizando graciosamente por entre a ondulação da água. É Sarah. Deitada na prancha, com a cabeça ligeiramente erguida, sai da onda, vitoriosa, e aproveitando a corrente rema de volta para o quebra-mar, segura-se com força sem mãos, mantém o equilíbrio habilmente sem pés. Sobe sozinha.
E se uma onda nos atinge? «Antes, o que costumava fazer era ir para o fundo e impulsionar-me para a superfície», explica. «Agora, uso um colete salva-vidas. Às vezes tenho dificuldade, mas tenho de descontrair, sei que vou conseguir sair.»
Sarah – agora com 24 anos – estava, sem o saber, a iniciar uma carreira promissora. Em 2019 venceu a sua primeira competição, o Pantín Classic, um campeonato internacional de surf realizado na Galiza (no noroeste de Espanha), vencendo o então campeonato europeu. Nesse mesmo ano, no final de setembro, venceu o Campeonato de Espanha na categoria prone 2, com a melhor pontuação do campeonato à frente de alguns campeões mundiais. Meses mais tarde foi convidada a integrar a Spain Surfing Team e a representar o seu país pela primeira vez numa competição internacional na Califórnia. Em 2022, Sarah foi campeã de Espanha e terceira do mundo. Em 2023, foi tudo: medalha de ouro no Campeonato de Espanha, no Campeonato da Europa e, agora sim, no Campeonato do Mundo. Está também a terminar a licenciatura em Direito.
«Gosto de me lembrar que, há poucos anos, saí do hospital sentada numa cadeira de rodas, a pesar 34 quilos, sem mãos nem pés, com a vida dependente de uma máquina de diálise. Vejam onde estou agora.»
O último desafio desportivo de Sarah – o auge da sua carreira meteórica – é tornar-se atleta olímpica. Algo que poderá acontecer nos Jogos Paralímpicos de Los Angeles em 2028, para os quais o Comité Paralímpico Internacional tem de incluir o parasurf como desporto olímpico. Por enquanto, está a ser um debate entre este desporto e a escalada adaptada. Em todo o caso, Sarah continua a treinar com todo o empenho.
«Se ela diz que vai, vai mesmo», avisa o pai, Ismael. «Se ela diz que ganha, ganha.»
Ismael Almagro, pai de Sarah, acompanha a filha à praia para surfar.
Sarah pratica surf adaptado sobre a prancha.