Rita Bulhosa e a paralesia cerebral

Rita Bulhosa e a paralesia cerebral


RITA BULHOSA,

UMA VIDA PARA ALÉM DA PARALISIA CEREBRAL 



Rita Bulhosa


POR ELA, A DETERMINAÇÃO dá asas, permite voar, é a palavra que desde sempre ajudou esta jovem autora a partilhar o seu testemunho em livro ou nas redes sociais e palestras que dá, sempre a expressar em palavras as suas lutas e atitude perante a diferença, sem filtros e com esperança. 

É na escrita que se liberta e incentiva outros a libertarem-se do estigma da deficiência. Numa sociedade tão padronizada, ser diferente não ajuda, corta os voos da vontade. 

Calcula-se que dois em cada mil nascimentos na Europa e nos EUA têm o diagnóstico de paralisia cerebral. Em Portugal registam-se, em média, 200 novos caso por ano. Quando nasceu, a Rita engrossou esta estatística. Ela nunca abdicou de lutar, como se comprova neste testemunho na primeira pessoa. 

É na primeira pessoa que a Rita escreve sobre ela, sempre com a expectativa de quem sobrevoa rentinho a planar numa vida rica de luta e que inspira os que desanimam e nunca tentaram voar. Este é o testemunho da Rita Bulhosa, uma jovem que há vinte e cinco anos anda a lutar contra o estigma da diferença provocado por uma paralisia cerebral. Como se não bastasse, um descuido médico mais recente acrescentou-lhe uma disfunção medular. Nada lhe tira o sorriso. 


É com letrinhas e muitas palavras que encontro o meu caminho. A minha história conto-a eu, sem falinhas mansas. Para mim, PC não é um computador é mesmo PARALISIA CEREBRAL. Que raio de nome mais feio haviam de arranjar. 


Não tive outro remédio, aprendi a ser diferente, sofrer mais, lutar em dobro e nunca deixar de sorrir. Não quero que pense em mim, mas reflita no que aqui conto e deixo com o meu testemunho. 

Só posso sorrir, porque na verdade há quem se queixe de uma dor de cabeça quando às vezes na minha condição é de perder a cabeça pela indiferença desta sociedade tão individualista. 


Se consultar no dicionário a palavra «resiliente» diz que é alguém que tem «a capacidade de recuperar após um revés ou de superar situações de crise, adversidade ou infortúnio; alguém que demonstra resiliência». 


Vou então deixar que me conheçam melhor um bocadinho. Definitiva

mente identifico-me como uma pessoa resiliente sem manual de instruções. Se a minha atitude e o que aqui conto como testemunho ajude alguém confrontado com a diferença sem saber como se virar para encontrar ânimo e vontade de se superar, já valeu a pena partilhar a minha história.

Embarquei na aventura da vida às cegas, já lá vão vinte e cinco anos e sem saber metade dos percalços que me iam acontecer ao longo do caminho. Entre viver e não viver, escolho sempre a primeira, independentemente das circunstâncias. 

Respeito e compreendo até certo ponto quem escolhe o caminho do desânimo de viver, no entanto, foi o ânimo que me calhou a mim.

Para qualquer ser humano no geral, é impensável não ter controle sobre um dia que seja na sua própria vida. É assim que todos aprendem a viver durante o seu crescimento. Pode-se ser emocionalmente dependente, socialmente incompleto ou simplesmente sentir-se cansado do mundo e muito solitário nele, mas desde que tenha corpo funcional passa a ser tudo na vida, para ele e para os outros. 

Não há um lado certo nem errado. A normalidade é apresentada como o único caminho e a única opção para a humanidade, e é tudo certo até ao ponto de sermos obrigados a sair dessa caixa desse rótulo de normalidade nesse mundo de padrões e egoísta. No meu caso, tendo nascido com paralisia cerebral – uma consequência da falta de oxigenação durante o parto, por desleixo médico –, a normalidade nunca me foi apresentada. Não me lembro de outra condição, desde que me conheço, mas digo-vos que convivo bem com a minha diferença. De facto, nunca tive um plano B, sempre tive um único plano, escrito com «A» maiúsculo e que me diz, quando falo cá comigo, independentemente do caminho que tivesse de fazer para lá chegar, o meu lugar seria onde eu quisesse que ele fosse, sem abdicar, independentemente de qualquer dificuldade ou até do próprio preconceito tão enraizado na sociedade.


À medida que fui crescendo, fui percecionando que o mundo que me rodeava não estava preparado para mim ou para indivíduos com condições semelhantes à minha. Houve uma altura em que acreditava, ainda criança, naquela velha máxima do «todos diferentes todos iguais», porém com a idade esse encanto foi desaparecendo. Hoje sem preconceitos, sem poeira de pensamento que me tire a visão das coisas, já sei que a sociedade se rege mais por uma adaptação dessa ideia: «Todos diferentes... e cada um por si.» É pena que assim seja.

Penso que essa minha crença inicial e romantismo perante a comunidade individualista que aos poucos ia percecionando, sempre esteve relacionada com a forma como fui educada. Fui criada numa família em que a minha deficiência nunca foi tabu, sempre fez parte das nossas conversas em família como ter outra cor, falar noutra língua. Além disso, tendo eu dois irmãos que sempre me trataram de igual para igual, custava-me a entender o facto de a atitude dos outros ser tão díspar daquilo que os meus me faziam sentir todos os dias. Cresci a soletrar, letra a letra, a palavra determinação.

Muitas vezes esbarrei no preconceito. E tantas outras, com mil e umas barreiras físicas, porque essas estão por todo o lado. O mundo desenha-se para os ditos normais, mas com regras de anormalidade.

A consciencialização da minha deficiência foi sendo feita tendo em conta a idade, mas a par disso era-me também apresentado o facto de ter de lutar. Por tudo e por nada, da escola ou às coisas mais simples.

Perguntam-me muitas vezes, se não houve em momento algum da minha infância ou até principalmente na adolescência, em que sentisse algum tipo de revolta! Muito embora possa parecer estranha a minha resposta, não me lembro de desejar, revoltada, outra condição sem paralisia cerebral. A vida não a conheci diferente, faz parte de mim, da minha maneira de estar e sentir tudo o que me rodeia. Aprendi sabendo que não iria correr e saltar, nunca seria atleta de alta competição, mas com tempo e saber poderia ultrapassar as barreiras e sempre cheguei onde quis, como quis, apesar das dificuldades físicas inerentes à minha condição.

Se preferia uma vida com menos complicação? Claro que sim! Perguntem lá se não foi um stress com namoricos na adolescência por não ser a escolhida? Também foi, no entanto, e sem saber responder o porquê, nunca vi a paralisia cerebral sem me ver a mim. A minha condição é o meu espelho de vida.

No fundo, sempre achei que embora ela viesse no pack de tudo incluído, não me podia limitar, nem definir. Talvez seja essa a minha defesa. Afinal o olhar da diferença está nos outros, eu sempre me vi assim. Por outro lado, também nunca me consegui descrever como pessoa sem referir o facto de ter uma PC (paralisia cerebral). Para mim aquele «pormenor» (um por maior na verdade!) fez de mim uma pessoa consideravelmente mais determinada e resiliente.


Por natureza, sempre vi o copo meio cheio na vida, como uma oportunidade de viver da melhor maneira que o corpo me deixe viver. 


Visto de fora, pode parecer que este modo de estar é-me imposto ou que até exteriorizo este tipo de discurso, só para me convencer a mim própria dessa realidade, mas eu não consigo ver a minha vida ou a forma como ela se iniciou no plano terreno como uma tragédia, muito pelo contrário, a vida é o que é, os acontecimentos são o que são, e cabe a cada um de nós fazer deles e com eles, o melhor que sabe e consegue. Porém devo confessar-vos que à medida que a idade avança esse equilíbrio é cada vez mais difícil de fazer. Vou aprendendo a trocar as voltas do desânimo.


Choquei muitas vezes de frente com a realidade. Já chorei em reação à pura maldade dos outros, da exclusão que foi múltiplas vezes praticada em relação a mim, mas segui sempre em frente contra todas as expectativas. 


Querem saber? Aos meus pais disseram-lhes na minha meninice que não «era suposto» eu aprender a ler e a escrever, talvez o fizesse com um computador. Eu aprendi. Mais tarde, também não era expectável eu conseguir fazer seguido todo o percurso escolar 

com um plano curricular normal. Eu fiz. 

Mais do que qualquer outra criança, eu fui constantemente posta à prova como se tivesse de dar contas da minha própria vida, a tudo e todos, as ditas pessoas normais, nesta sociedade de rótulos da qual eu também faço parte. 

Desde sempre, e com níveis de consciência diferentes, deu-me uma nítida sensação que tinha de pedir licença para ser e existir, e quando me era dada uma oportunidade porque «sou muito persistente», quase me faziam acreditar que tinha de agradecer mil vezes a oportunidade, que tinha tudo para não ser minha. Simplesmente porque era diferente e só os normativos se podiam dar a esse luxo da conquista. 

Agradeço todos os dias, ainda hoje, não por existir e ser, mas sim por ter uns pais que me ensinaram que a minha existência é tão válida quanto a das outras pessoas. Todos os que me mostraram que o mundo, para além de ser redondo e dar muitas voltas, também é o meu, na mesma medida em que os outros, «só» por serem normais, se acham mais dignos desse sentimento de pertença. É sempre uma luta desigual. 

Aos quinze anos eu escrevi isto: o mundo é tão igual nas atitudes... Para bem e para mal, a diferença obriga a olhar, a reparar, e só é pena que por vezes nos olhem de lado, sem compromisso e com falsa compaixão. Vá lá. Olhem-me... olhem-nos de frente, e nunca se esqueçam que os olhos também são um espelho do coração. 


Questionam-me muitas vezes, como é que perante este cenário de mundo às avessas, tantas vezes hipócrita, eu consigo estar sempre a sorrir. Dizem-me, em todas essas ocasiões, que o sorriso é a minha imagem de marca. Talvez seja a minha defesa, na verdade só tenho de agradecer e sempre cada palavra, mas não consigo dar uma razão para o meu sorriso franco e espontâneo. 

Aliás, nesta nova era de «sorrisos lindos e vidas perfeitas de Instagram» eu sou a antítese de tudo isso. 


Recuso-me a esconder dos outros um dia mau. Sinto dores físicas diárias e até posso vir a disfarçar o incómodo que elas me causam num dado momento, contudo, considero que a vida é demasiado efémera para que deixemos de a viver.

No entanto, esta minha perspetiva não significa que estou constantemente com a mesma garra de viver a vida sorridente.

Desenganem-se os pensam que fazemos tudo sozinhos, que somos todos super-heróis da nossa própria história. Fazemos o que podemos enquanto seres humanos imperfeitos que somos. Ao longo de todos estes anos, já percorri muitos médicos especialistas que vão acompanhado «o meu caso clínico» e a partir daí vão dando a melhor solução para as minhas patologias. 

À medida que faço este caminho sinuoso e por vezes muito solitário, precisei sempre de um certo equilíbrio. Alguma inteligência emocional, muita força de vontade, e sempre que me sinto a «bater no fundo», peço ajuda entre choros e conversas existenciais com quem já me conhece bem de mais. É uma boa técnica.

Na minha opinião, o «caso clínico» da nossa alma também deve ser partilhado sem receios nem restrições, aliás, os psicólogos sempre fizeram parte da minha vida. E aqui está um dos meus segredos.

O meu sofrimento físico – tão presente às vezes – despertou-me ainda mais para os outros e para tudo aquilo que me rodeia, sem que a minha paz seja comprometida. 


Quando passamos a ter mais consciência da nossa jornada interior, percebemos que há uma sociedade e um mundo que embora tenha cada vez mais desafios que requerem uma consciência para além do palpável e do material, é o oposto disso. 


Ainda assim, quando conhecemos o sofrimento numa escala inqualificável percebemos que nada, nem a ordem em que o mundo está estruturado faz sentido. E aí percebemos que a vontade em praticar o bem e a empatia que sentimos por tudo o que está ao nosso redor não depende de convenções nem protocolos sociais, mas sim da nossa perspetiva perante a vida que nos ensina e nos faz evoluir dia após dia.


É importante salvaguardar que por se escolher um caminho não quer dizer que ele não tenha pedras, curvas e contracurvas e inversões de marcha. Na verdade, por experiência própria digo que tem muito de tudo isto. 

Se há dois anos me dissessem que a minha vida ia dar a volta de 360º que deu, eu certamente ia achar que me estavam a falar de um filme com um guião, no mínimo, rebuscado.

Fiz uma escolha, uma escolha que na verdade tinha de ser feita naquela altura, mas que mais recentemente me veio trazer consequências graves.

Uma das coisas que a paralisia cerebral provoca entre um sem número de coisas, é uma escoliose secundária e/ou congénita.

A mim ela calhou-me na rifa, o que fez com que fosse submetida a uma cirurgia para correção dessa mesma deformidade, com a colocação de parafusos na coluna. Sete anos depois, tive de os tirar todos, um por um, por uma rejeição tardia.

Este é um assunto de que embora fale publicamente, me custa sempre rever. Primeiro porque acho que só podemos evoluir enquanto pessoas se nos permitirmos perdoar as circunstâncias que nos levaram a tal situação. Segundo, porque atualmente e com o distanciamento necessário, percebo que existem casos e casos, médicos e médicos e milhares de operações por dia que correm mal, ou menos bem.


Como humanos que somos, também falhamos. Os médicos não são exceção. A questão do erro pode existir sempre, eu acredito, por mais que me custe e que sinta na pele diariamente essa falha de um renomado médico, que ninguém erra porque quer. A escolha que fazemos a seguir ao erro, essa sim é que conta e que nos define a nós e aos outros como pessoas. Aprendi, a muito custo, que quando queremos arrastar culpas que nos deixaram consequências reais de 

dor e sofrimento no nosso corpo, ao contrário do que pensamos numa primeira instância, não estamos a endereçar esse sentimento às pessoas que vemos como vilões, mas sim a nós mesmos. Esse sentimento de querer a justiça corrói-nos por dentro, a nós e não aos outros a quem em algum dia pedimos socorro, sem sermos ouvidos. Faz dois anos que, para além da minha condição de base de paralisia cerebral, fiquei com uma disfunção medular. E com todas as condicionantes que isso tem. É engraçado perceber que quando temos uma nova provação na vida, neste caso física, só perante isto, damos conta do quanto fútil pode ser a vida que vivemos nas flostrias sem sentido. A nossa vida gira em torno de bens materiais.


Paralelamente a isso temos a tendência para pensar que a nossa vida e a nossa dor é a mais insuportável de todas. As expectativas são cada vez mais altas e o nosso umbigo passa a ser o centro daquilo que achamos ser o mundo. 


Acreditem que quando a vida nos dá um abanão dos grandes, é aí que percebemos que todas as certezas que tínhamos antes dissiparam-se e aquilo que tínhamos como o certo passou a ser o incerto, a nossa vida passou a ser posta em causa. Nos meus 25 anos de vida já passei por muitas provações e por umas lutas mais complicadas do que outras, porém só agora consigo perceber o quanto me fizeram crescer, ser grata sem ressentimentos nem tristezas. Costumam dizer que podemos escolher ser as vítimas ou os heróis da nossa própria história. Eu escolho ser apenas, um ser humano com defeitos e virtudes que procura viver da melhor forma que sabe e consegue. Se pelo caminho puder mostrar a alguém que é possível viver a vida em todas as suas estações e cores que isso nos dá, melhor ainda. 


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