«CHE BELLA DONNA SOPHIA!»

«CHE BELLA DONNA SOPHIA!» 


DIVA FEZ 89 ANOS 




 Há algo nas verdadeiras divas que as torna reluzentes, trespassam as velhas películas de celuloide e dançam no pensamento só para nós. Fixamos o olhar e soltam-se mil personagens em desfile, cada uma delas com um pedacinho da história desta arte. Isso, sim, é uma estrela de cinema à moda antiga. Setembro foi o mês de Sophia Loren, que no dia 20 completou 89 anos. 

O que o cinema tem de mágico é que eterniza o melhor do encanto, as imagens de Sophia guardam esses olhares, os sorrisos, uma classe que nas duas conversas que tivemos sobre a carreira e a arte de representar eu pude confirmar porque ela é, ainda, uma das mulheres mais famosas e adoradas do mundo. 




 Mário Augusto 

Fotografias – todos os direitos reservados 



Fiquei a pensar que já não se fazem estrelas assim, a pose, a atitude – mais frágil com o passar dos anos –, as tantas histórias que tem para contar. Fixei a beleza, aqueles olhos de um verde-acastanhado, muito próximo do tom mel doce que mais pareciam um ecrã que projetava a história de um período especial da vida do cinema, talvez o melhor e mais glamoroso. 

Para entrevistar uma estrela da velha escola é preciso ir preparado para gerir o tempo de conversa. Horas de partilha não chegavam para percorrer mais de sessenta anos de carreira, recolher sabedoria viva e memórias. O que guardo desses momentos são as respostas pausadas como quem quer retardar cada minuto para relembrar a vida. A cada pergunta sobre o passado via nela, naqueles olhos refletivos, a procura dessas vivências para as partilhar mais uma vez.


«Ainda trabalha com a mesma paixão?»


«Em cinema, é impossível trabalhar sem paixão... Eu fiz tudo o que queria ter feito para poder evoluir artisticamente na minha carreira. Tive sorte porque sempre estive rodeada de pessoas que podiam ajudar-me nesse caminho. Tive muita sorte, mas batalhei muito para encontrar o meu sonho, fazer dele realidade.

É claro que, para podermos evoluir na carreira, precisamos de histórias que possam ajudar-nos a bons desempenhos, fazer filmes maravilhosos, criar personagens fantásticas. 


Bem... hoje sei que não encontrei isso em todos os filmes que fiz, mas sempre procurei papéis nos quais pudesse dar o melhor que tenho dentro de mim. Só assim se consegue comover as pessoas, desfrutar do trabalho e passar para fora do ecrã.»


Alguns papéis memoráveis fizeram-na descolar não só de um rótulo de beleza intocável para lhe dar ainda uma força maior de grande atriz, tocando todos os géneros.


Sophia Loren, que foi batizada com o nome Sofia Scicolone, nasceu em Roma (20 de setembro de 1934). Era filha de Riccardo Scicolone e da atriz Romilda Villani. Sophia e a irmã, Maria Scicolone, cresceram sem o pai por perto, ele já era casado e não quis assumir a família ao lado de Romilda. A mãe, também dona de uma beleza única, vivia em Roma, e naquele tempo de guerra foi muitas vezes comparada a Greta Garbo. Sem trabalho, sozinha e com duas filhas para criar, acabou por regressar a casa dos avós, a Pozzuoli, a sua pequena cidade de Nápoles. Foi aí que viveram um longo período de pobreza, logo após a Segunda Guerra Mundial. No discurso de agradecimento na homenagem que lhe foi feita em França no festival Lumière na cidade de Lyon, a atriz recuou à meninice referindo: «Nunca me perdi, sempre resisti, sempre lutei. Com a minha família tive uma vida muito dura, não tive pai... mas tive muito amor dos meus avós e da minha mãe. E acredito que Deus ajudou-me muito. Sempre fiz as coisas bem, da melhor maneira possível, como uma menina que vai à escola e que tem de fazer bem as suas tarefas. Pouco a pouco, tornei-me alguém.» 


Na escola, Sophia era conhecida como a «Sofia palito» de tão magra que era. Aos 14 anos a vida começa a mudar, quando é incentivada a participar no concurso de beleza Miss Itália, do qual foi uma das finalistas e eleita Miss Elegância. Foi essa participação que começou a despertar a atenção dos cineastas, o quanto bastou para regressar a Roma e poder chegar ao cinema como figurante, tendo participado sem sequer ter o nome na ficha técnica no épico Quo Vadis, de 1951. O entusiasmo pela descoberta do cinema frente à câmara levou-a a frequentar aulas de representação na capital italiana. Quando se estreou registava o nome como Sofia Scicolone, ou Sofia Lazzaro, ainda em papéis pequenos. O nome artístico Sophia Loren surgiu em 1953 e saltou à vista dos produtores no ano seguinte, quando foi escolhida por Vittorio De Sica para protagonizar um dos momentos do filme O Ouro de Nápoles. De Sica seria, além do amigo de sempre, o realizador com quem mais trabalhou – a atriz participou em catorze filmes do mestre do neorrealismo, mas também genial nas comédias de costumes no período áureo do cinema italiano. 


Uma memória e cinema


O papel principal em todo o processo de crescimento como atriz e estrela de cinema coube ao produtor e mais tarde marido, Carlo Ponti, uma relação de trabalho que a fez brilhar e transformar a carreira, um processo natural que a levaria aos contratos milionários de Hollywood. É com uma paixão carinhosa que a atriz se refere ao marido na sua autobiografia publicada em 2014, Ontem, Hoje e Amanhã – A Minha Vida como Um Conto de Fadas, na qual escreveu: «Ponti será sempre o homem da minha vida, aquele que realmente me compreendeu, me acompanhou.» 


Conheceram-se quando ela tinha 15 anos e ele 37. Casaram em meados 

da década de 1950 mas, como Carlo Ponti ainda era oficialmente casado, de acordo com a lei italiana da época o divórcio não era reconhecido, foram obrigados a anular o casamento em 1962, caso contrário teriam de enfrentar um processo legal de bigamia. Só em 1966 é que conseguiram oficializar a relação, que durou até à morte de Ponti em 2007, aos 94 anos. Ele estava ao lado dela em Hollywood quando em 1962 ganhou o Óscar de Melhor Atriz pelo intenso drama de De Sica, Duas Mulheres.

Com a pergunta acerca do que lhe ficou de recordações dos filmes que fez e quais os mais marcantes, eleva o olhar em pausa e solta as memórias. «Sabe, eu fiz cerca de cem filmes, ou talvez mais, por isso é muito difícil escolher entre todos os que fiz, mas digamos que guardo com um carinho especial o filme que fiz com Marcelo (Mastroianni), Casamento à Italiana.


Duas Mulheres (La Ciociara) é muito marcante para mim devido à personagem que interpreto, que me exigiu muito, uma personagem em drama e sobrevivência. Foi com esse filme que ganhei o Óscar, mas não posso deixar de referir Um Dia Inesquecível ou outras produções de Hollywood onde passei bons momentos. E devo recordar também um filme para mim especial no qual fui dirigida por Charlie Chaplin, A Condessa de Hong Kong. Tive muita sorte por fazer parte desse tempo. Hoje, quando olho para trás acho que fiz todos os filmes que queria, mas confesso que ainda gostava de poder fazer mais alguns. Não sei... mas gostava, sinceramente.»


Os filmes que a marcaram são de um tempo em que era considerada um símbolo sexual, uma mulher que estabelecia os padrões de beleza da época. Ela sorriu quando evoquei o rótulo de símbolo sexual. «Olhe hoje para mim! Gosto de me manter bonita, elegante, mas longe desses padrões, acho que sempre me distanciei disso porque percebi muito cedo que é impossível ser um símbolo sexual a vida toda. Isso é coisa de jovem, corre-se o risco de ter uma carreira muito curta. Há um momento em que se devem escolher papéis com os quais se pode ir mais além. Foi o que fiz com Duas Mulheres.


Repare, eu tinha 25 anos e no filme desempenho o papel de mãe de uma menina de 15 anos. Quando olho para trás, acho que ganhei o meu lugar como atriz com este filme, que depois me fez chegar alguns papéis maravilhosos.»


A imagem perfeita


A beleza, mesmo quando não é valorizada por quem se vê ao espelho, toca quem olha, e convenhamos que Sophia Loren sempre soube tirar partido do sex appeal que lança numa relação única com as objetivas. Basta olhar para qualquer uma das fotos da atriz na juventude. Recordo, no entanto, uma declaração mais recente, quando ela já contava mais de 70 anos, quando uma jornalista de revista cor-de-rosa lhe perguntou numa conferência de imprensa como se sentia quando se via ao espelho. «Eu pareço bem – apenas bem. O meu nariz é muito comprido, o queixo muito curto, os quadris muito largos. Mas, juntas, todas essas irregularidades parecem funcionar bem na imagem. Sinceramente, não me importo de envelhecer.


Toda a gente envelhece – se tiver a sorte de andar por cá. Hoje, sinceramente sinto-me mais envelhecida. Não tenho nada contra a cirurgia plástica se uma mulher é obcecada com a sua aparência, mas eu gosto de ficar com o meu velho e querido rosto. Não me importo de envelhecer. Sou jovem por dentro, por isso envelhecer para mim não faz diferença. Se quer que lhe diga, a melhor coisa que alguma vez fiz pela minha aparência foi parar de fumar. Eu tenho uma rotina para a minha aparência: água e sabão de manhã e à tarde, creme de bebé em todo o corpo, protetor solar quando saio para os meus passeios diários.»


É uma carreira cheia de sucessos dividindo o ecrã com verdadeiras lendas, nomes consagrados como Marlon Brando, Cary Grant (que dizem ter-se apaixonado por ela quando se cruzaram no estúdio), Clark Gable, Frank Sinatra, Charlton Heston, Gregory Peck, Anthony Quinn, Paul Newman, David Niven, Alec Guinness. Em 1991 a Academia voltou a homenageá-la com um Óscar honorário quando foi considerada «um dos maiores tesouros do mundo». Pedi-lhe, num exercício de memória, que me dissesse quais as estrelas que mais a seduziam antes de chegar ao seu lugar no cinema. «Sabe, ainda hoje gosto de ver os filmes da Joan Crawford, da Bette Davies, mas mais, por exemplo, a Dorothy Lamour. Eram esses filmes que eu via num pequeno cinema na minha cidade em Pozzioli, era lá que eu vivia, onde sonhava que talvez um dia... só em sonhos mesmo, um dia pudesse ser uma dessas estrelas. Para mim, a vida vista com esta distância é magia pura.»


«Fala de sorte na vida! 

Mas não foi apenas isso...»


«Não é apenas sorte. Eu não acredito na sorte só porque tropeçamos nela. É o querer que conta e promove a sorte. Eu sempre quis e lutei pelo que consegui. Esse é o meu segredo. Mesmo sendo filha de uma família muito pobre, lutei muito: as minhas conquistas têm também sofrimento, alguma dor e ansiedade pelo que fui conquistando.»


O último filme em que participou valeu-lhe mais um prémio. A realização é do filho, Edoardo Ponti, um drama de 2020 sobre os conflitos interiores de uma senhora idosa, madame Rosa, uma sobrevivente do Holocausto que acolhe um jovem refugiado senegalês. Uma história do mundo de hoje. Na apresentação ela realçou a importância do filme para este final de carreira, não só porque lhe permitiu trabalhar com o filho, mas também, como referiu nas entrevistas, «deu-me a oportunidade de viajar de diversas formas ao meu passado. Eu era uma criança durante a Segunda Guerra Mundial e este filme lembra-me as coisas que vivi em Nápoles naqueles anos, por isso senti esta história muito próximo do meu coração. Temos a obrigação de assegurar que certas coisas não se repetem no mundo». 

Voltando à última conversa que tivemos, e já lá vão nove anos, falámos essencialmente do passado, da vida que a trouxe até aqui... e do cinema.


Sem saudosismo, estabelece comparações com os outros tempos. «O cinema de hoje é diferente. Confesso que por vezes é um mundo que já não entendo. Mas as pessoas vão ao cinema para poderem sonhar. Sonhar com uma vida melhor, sonhar para procurar uma explicação para os problemas que têm, e outras vezes para captarem a essência da vida, mas a verdade é que, hoje, por vezes olhamos para o ecrã e não vemos nada de nada. Olhamos para o ecrã e não ficou uma chama que nos ponha a pensar, a refletir. Não aconteceu nada. Outros tempos, outra magia talvez. Agora, sim, posso dizer que tive muita sorte pelos tempos que vivi.» 


Atualmente, a atriz vive isolada na sua mansão nos arredores de Genebra e leva uma vida muito normal, já com muitas limitações físicas mas com a classe de sempre e mais focada na família. Na última entrevista que deu a um jornal italiano declarou que vive rodeada do carinho dos quatro netos.


«Só quero desfrutá-los ao máximo enquanto puder.» 


Se tivesse a morada da casa enviaria um ramo de flored para Itália a agradecer-lhe as entrevistas. É com os grandes que se aprende a humildade do saber, por isso sou sempre um privilegiado por poder ter momentos como estes. 




«O prazer de conversar com Sophia Loren resultou sempre numa grande viagem cinéfila pelas memórias dos bastidores dos filmes antigos».



- Mário Augusto



Vittorio De Sica dirigiu a atriz em várias ocasiões, dos dramas às comédias. Destacou-se também no último filme de Chaplin ao lado de Marlon Brando.



Amigos na vida real, Sophia e Marcello Mastroianni, formavam uma dupla imbatível no ecran. Sophia refere-se ao ator como um dos dois amores do ecran. 



Sophia e Marcello Mastroianni fizeram onze filmes ao longo de trinta anos, o ultimo foi em 1994, dois anos antes da morte do ator. 







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