AO QUINTO DIA QUE BRIAN KOONOO passou sozinho no meio do nada, a neve parou e o sol aqueceu o ar do Ártico. Brian aventurou-se para fora da tenda, apertando a sua parca e ajustando as botas de pele de foca. Olhou para os bancos de neve, que se espalhavam no horizonte em todas as direções.
Era o dia 17 de maio de 2015, e Brian, então com 36 anos, estava fora do alcance das comunicações desde dia 13. Havia por certo pessoas à sua procura, pensou, mas quais seriam as probabilidades de o encontrarem e à sua moto de neve avariada, sozinho como estava na desoladora vastidão nevada do Círculo Polar Ártico? Brian subiu à colina mais próxima do se acampamento improvisado e observou o mostrador do seu rádio portátil, esperando apanhar um sinal. Fez uma fogueira, usando o lixo que tinha e algum óleo de cozinhar, e o fogo ardeu quente e limpo, fazendo uma chama sem fumo. Olhou para o caminho de onde tinha vindo. A neve cobrira as marcas da moto. Qualquer avião à procura do caçador inuíte perdido teria dificuldade em localizá-lo – um ponto de cor num branco infinito.
Pela primeira vez, Brian sentiu uma esmagadora sensação de desespero. Pensou na sua mulher e nas cinco filhas que deviam estar preocupadas com ele, lá em casa, em Pond Inlet, no Nunavut, no norte do Canadá. Começou a chorar. À distância, um lobo uivou, e Brian uivou de volta. Depois, tomou a sua decisão. Se quisesse voltar a ver a sua família, teria de ir a pé.
A VIAGEM COMEÇARA como expedição de caça. Pond Inlet é um povoado de perto de 1500 pessoas na ponta norte da ilha Baffin – uma coleção de casas de metal corroído na orla do gelo, onde o frio do mar se derrete no oceano aberto. Nos últimos anos, a caça de caribu vem sendo restringida, para que a manada, cada vez menor, possa recuperar, mas no continente ainda havia bastantes animais. O plano de Brian era ambicioso: iria viajar quase 500 quilómetros pela tundra numa moto de neve, rebocando um trenó com mantimentos. Algures a sul de Hall Beach, 450 quilómetros a sul de Pond Inlet, iria encontrar-se com um grupo de amigos, passar alguns dias a caçar caribus e, depois, se tivesse sorte, trazer a muito necessária caça para a sua família.
A 10 de maio, Brian deixou a mulher e as filhas, viajando 20 horas para sudeste sobre neve e gelo marinho, dormiu um pouco e continuou até chegar a Igloolik, quase 400 quilómetros para sul, a 12 de maio. Passou a noite com o seu amigo de infância Perry Atagootak e retomou a viagem no dia seguinte, passando por Hall Beach.
Caçador desde os três anos e empregado dos Parques do Canadá, Brian tinha muita experiência de vida na natureza. Depois de deixar Hall Beach, no entanto, começaram os azares. O plano tinha sido viajar até uma série de cabinas isoladas na natureza – estruturas simples que a população local usava. Iria usar o seu rádio SSB, suficientemente poderoso para atingir grandes distâncias, para determinar exatamente onde estavam os seus companheiros de caça.
Quando parou na primeira cabina, percebeu que o saco que continha esse aparelho e o seu saco-cama tinham caído do trenó durante a viagem sobre terreno irregular – estavam perdidos algures na neve. Brian não tinha forma de comunicar exceto por um rádio de mão com um sinal tão fraco que mal ultrapassava o alcance da vista. Passou ali a noite, depois decidiu que a melhor opção era ir até Repulse Bay, a um dia de viagem.
Mais a sul, o terreno plano dava lugar a colinas e vales, com rochas e bancos de neve que ameaçavam engolir a moto. Nessa tarde, o veículo morreu, atingido por um problema de transmissão. Compreendendo que estava perdido, Brian sabia que o melhor que tinha a fazer era ficar quieto e esperar salvamento. Montou a tenda a acampou, mantendo o fogão de campismo aceso para tentar manter-se quente sem o saco-cama.
QUANDO BRIAN PARTIU, a sua mulher, Samantha, não sabia exatamente quando voltaria a ter notícias dele. Numa expedição de caça no Norte, as comunicações são pouco fiáveis, e os planos mudam depressa. Samantha, de 34 anos, estava a tirar um curso de educadora infantil, enquanto criava as cinco filhas do casal, com idades entre os 3 e os 13. Confiava que o marido conseguia desenrascar-se sozinho. Mas a 15 de maio, Perry Atagootak perguntou pelo Facebook se alguém tinha visto o seu amigo. Haviam passado três dias desde que Brian passara a noite em Igloolik. Quando Samanta leu a publicação, sentiu um murro no estômago. «Liguei à mãe dele e disse-lhe: “Estou preocupada com o Brian.”», conta. A mãe de Brian contactou o colega dele dos Parques do Canadá, que notificou as buscas e salvamentos.
Ao longo dos quatro dias seguintes, enquanto Brian enfrentava o frio sozinho, reuniram-se equipas de busca e salvamento por todo o norte do Canadá. Nesta parte do país escassamente povoada, com o seu clima impiedoso, um pequeno erro pode significar uma tragédia. Numa tarde de novembro de 2011, o presidente da câmara de Kimmirut, na ilha Baffin, foi caçar caribus e desapareceu na natureza. O seu corpo só foi descoberto no degelo de verão do ano seguinte.
Três motos de neve partiram de Pond Inlet, mas foram inicialmente travadas por vento e neve fortes. Quatro batedores partiram de Hall Beach e mais de Repulse Bay, todos voluntários usando os seus próprios veículos para vasculhar o trilho em busca de qualquer indício do caçador desaparecido. Nesse sábado, o Centro de Coordenação Conjunta em Trenton, Ontário, envolveu-se enviando um Twin Otter e um Hercules C-130 para voar entre Repulse Bay e Igloolik em busca de Brian.
Em casa, Samantha sentia-se a perder a cabeça. Deveria saltar para dentro de um avião e tentar encontrar o marido? O que devia dizer às filhas? Deitada na cama, tentava não olhar para o lugar onde devia estar Brian. Porque é que não o conseguem encontrar?, afligia-se ela.
A 17 DE MAIO, BRIAN decidiu aproveitar os céus momentaneamente limpos para tentar a sua sorte. Tinha comprado um sistema de GPS, mas precisava de ser ligado à moto de neve. Com uma ligação direta ao rádio, o aparelho ganhou vida. Estava a 60 quilómetros de Repulse Bay, a povoação mais próxima. Seria uma caminhada dura sobre relevo acidentado na neve, mas não tinha escolha.
Brian ferveu água e encheu a sua garrafa térmica. Juntou o fogão e a tenda no seu toldo, mas depressa percebeu que arrastar carga pesada seria impossível. Tomou a decisão de encher a sua mochila com o essencial: o pão e presunto que lhe restavam, velas de emergência, sacos de plástico, uma faca de caça, rádio GPS e munições. Embrulhou a mochila no toldo e prendeu-o bem com uma corda. Verificou as coordenadas e fixou os olhos no horizonte. Depois, pendurou a espingarda ao ombro e começou a andar.
Brian manteve um ritmo constante, avaliando a direção do vento e mantendo as dunas de neve alinhadas para não se desviar da rota. Deslocava-se metodicamente pela neve, que tinha mais de meio metro de profundidade, tentando não transpirar demais nem ficar demasiado exausto, bebendo goles de água quente da garrafa enquanto caminhava.
Em meados de maio, o sol não se põe acima do Círculo Polar Ártico. O tempo mais quente em breve derreteria a neve, mas, para já, as temperaturas mantinham-se abaixo de zero, e parecia muito mais frio quando o vento levantava. Brian caminhou durante a tarde toda e uma boa parte da noite, cobrindo cerca de 25 quilómetros, até já não conseguir andar. Na margem do leito de um riacho, encontrou um monte de neve encostado a uma rocha. Com a faca cavou uma gruta de neve – um abrigo de emergência que o pai o tinha ensinado a construir. Escavou espaço suficiente para o corpo e tapou o buraco com o seu toldo. Aninhou-se lá dentro, comeu e adormeceu.
Quando acordou, umas horas mais tarde, sentia-se revitalizado e pronto a caminhar. Mas o troço seguinte era mais difícil, com relevo mais acidentado. Começou a embrenhar-se nos jogos mentais em que nos envolvemos quando estamos sozinhos e desesperados. Continua a subir, dizia a si mesmo, e vais ver uma cabana de caça do cimo do monte. Depois chegava ao topo só para ver outra colina.
A meio desse dia, Brian viu aviões à distância. A princípio presumiu que se dirigiam para uma das pequenas comunidades a norte. Quando voltaram, percebeu que estavam à procura dele. Brian agitou a sua arma no ar, esperando que avistassem o brilho do metal. Quando se aproximaram, ligou o rádio, tentando sem resultado apanhar a sua frequência ao passarem por cima.
Nessa noite, havia menos neve, quase não tinha profundidade para construir um abrigo. Brian cortou alguns blocos de neve de um monte e empilhou-os, depois esticou o seu toldo entre uma rocha e a parede improvisada. Acendeu uma vela de emergência e encheu a garrafa com neve, segurando-a sobre a chama até conseguir beber. A tremer, meteu os braços dentro da parca, enterrou a cara no forro e adormeceu.
NA MANHÃ SEGUINTE BRIAN ainda tremia – a sua respiração tinha criado condensação dentro da parca durante a noite. Estava um dia feio, com neve que reduzia a visibilidade a alguns metros à sua volta, e ventos de 60 quilómetros por hora que atravessavam como facas a sua parca húmida. A temperatura do centro do seu corpo estava a baixar, e a hipotermia instalava-se. Sabia que se não se mexesse depressa morreria.
Brian atirou rapidamente os seus mantimentos para a mochila. Quando puxou o fecho, ele partiu-se, por isso abandonou o saco. Meteu a faca, o GPS e o rádio nos bolsos, encheu o saco estanque com neve e enfiou-o dentro da parca, para derreter e ter água para beber. Depois agarrou na arma, enrolou o toldo em volta dos ombros e começou de novo a caminhar.
Com três dias de viagem a pé, com poucos alimentos, sono ou água, Brian estava em sofrimento. Caminhava 50 metros até colapsar na neve, ficando deitado até reunir a energia para se arrastar de novo em frente. A dado momento, o vento apanhou-lhe o toldo, arrancando-lho das mãos. Correu atrás do pedaço de plástico, mas estava fora de alcance. Fraco e exausto, viu-o afastar-se levado pelo vento. Com pouca água, estava a ficar perigosamente desidratado. Uma perna teve uma cãibra, e Brian rezou em silêncio para ter forças, coxeando até recuperar a mobilidade. Depois a outra perna teve uma cãibra.
Esgotado, caiu de novo. Desta vez, não se levantou. É assim que é desistir, pensou, olhando para a neve a rodopiar no céu. As suas pernas descansavam. Deixou a mente vaguear. Ali deitado, Brian sonhou com a sua família. Em casa, em Pond Inlet, a vida deles era simples – ver filmes em casa, caçar focas sobre o gelo. Na sua cabeça, ouviu a filha mais nova, Alina, uma turbulenta aluna do pré-escolar, que parecia estar sempre a rir, impossivelmente feliz. «Ataata», disse ela, a palavra inuíte para pai. De repente acordou com um choque. Um lagopus, ali perto, chamava insistentemente num cacarejo irritante que parecia ficar cada vez mais sonoro. Brian sentou-se. OK, vou começar a andar, pensou ao pôr-se de pé. Quero ver a minha mulher. Quero ver as minhas filhas. Quero vê-las crescer.
Brian avançou com dificuldade. Por vezes as colinas eram tão íngremes que precisava de usar a faca para escavar degraus para os pés. A cerca de oito quilómetros de Repulse Bay, avistou torres de rádio – o primeiro sinal de uma comunidade. Cambaleou em frente até que avistou uma cabina no topo de uma colina. Com o que restava da sua energia, subiu e arrombou a porta.
Lá dentro, Brian ligou um fogão de campismo, e aqueceu imediatamente alguma neve, engolindo a água morna. Encontrou um pacote de sopa de vegetais e comeu-o. Tirou as botas pela primeira vez numa semana e viu os pés – pálidos como a neve, encurvados e enrugados. Depois encontrou um cobertor, deitou-se no sofá e dormiu 12 horas.
A CAMINHADA ATÉ AO POVOADO, no dia seguinte, 20 de maio, foi fácil, e Brian chegou às 5h30 da manhã, com toda a gente ainda a dormir. De repente, sentiu timidez. Não conhecia ninguém em Repulse Bay, e iria parecer um louco.
Viu um táxi a chegar junto de uma casa e imaginou que os seus habitantes estariam acordados. Aproximou-se da casa, tirou a espingarda e a faca e abriu a porta.
Uma mulher dormitava no sofá. Brian bateu na parede e, com embaraço, começou a explicar quem era e o que tinha passado. Não chegou muito longe até desfalecer. A mulher fitava-o. «Tu és o tipo de quem andávamos à procura», disse. O marido da mulher tinha participado na operação de busca e salvamento, tentando encontrar o homem que tinha acabado de lhe aparecer à porta.
HOJE, NA SEGURANÇA da sua casa, Brian fica emocionado quando relembra a receção que teve. «Todos estavam felizes onde quer que eu fosse», diz. Lembra como aquele casal lhe deu bebidas quentes, o banquete no ginásio da escola, a forma como os anciões do povoado vieram conhecê-lo – o homem que tinha sobrevivido ao Ártico selvagem, o homem que se tinha recusado a desistir.
De volta a Pond Inlet, teve outra receção. Na orla da cidade, onde o mar encontra a costa, a sua comunidade veio recebê-lo. Quando Brian segurou a sua mulher e as filhas nos braços desfaleceu de novo. Chorou – todos choraram – e depois a multidão bateu palmas a saudou-o quando ele deu os últimos passos na direção de casa.