Na biografia mais conhecida de Hitchcock, logo nas palavras iniciais a autora escolhe para primeira frase uma citação do realizador: «O meu maior sonho é entrar numa loja vulgar de roupa para homens, numa rua qualquer, e comprar um fato já feito.» Mais à frente, refere ainda: «Se tivesse tido a possibilidade de escolher a minha imagem, seria parecido com o Cary Grant.»
Curiosamente, essa sua imagem de gorducho bonacheirão é das mais icónicas do cinema. Reconhecido como um dos mais geniais mestres do suspense, Alfred Hitchcock nasceu há 120 anos. Uma boa data para o recordar e saber mais sobre uma vida cheia de sustos no escurinho do cinema.
Sir Alfred nasceu a 13 de agosto de 1899 no bairro de Leytonstone, a nordeste de Londres. O pai era um comerciante próspero, negociava em fruta, verduras e galinhas, era autoritário e muito respeitado na cidade. Foi uma presença muito marcante na vida do pequeno Alfred que, juntamente com dois irmãos mais velhos, recebeu uma educação austera muito disciplinada, tendo passado por vários colégios católicos. Um deles, o St. Ignatius College, dirigido por jesuítas, deixou-lhe marcas profundas devido ao modo como eram aplicados os castigos. Diria mais tarde, numa das biografias, que foi um período que recordava pelo rigor da aprendizagem e disciplina e que deixou memórias que nunca mais o abandonariam: «O método de punição foi para mim muito dramático. Lembro-me que o aluno, depois de transgredir, tinha de decidir quando ir para a punição que lhe era aplicada. Devia dirigir-se a uma sala especial onde estava o sacerdote encarregado de aplicar esse castigo. Era como ir para uma execução. Eu acho que foi um período mau. Eles, para nos baterem, não usavam o mesmo tipo de cinto com que noutras escolas açoitavam as crianças, ali era um cinto de borracha que magoava muito mais.» Nesse início do século xx, em pleno período vitoriano, o castigo físico era prática habitual.
Viveu uma infância marcada pela imposição de autoridade e regras que o acompanharam para sempre. Há uma história curiosa e que ele gostava de contar, que envolvia o pai e o chefe da polícia do seu bairro. Alfred tinha 5 anos. Depois de ter feito uma asneira de criança lá por casa, o pai deu-lhe um bilhete para entregar na esquadra. Quando lá chegou, foi literalmente preso numa cela durante alguns minutos. Ao ser libertado – estamos a falar de uma criança de 5 anos –, ouviu uma reprimenda do polícia: «Isto é o que se faz com as crianças que se portam mal.» O bilhete que o pai o mandou entregar era um pedido para o prenderem durante algum tempo de modo a ficar a perceber o que são regras de conduta e como se resolve o mau comportamento. Ele contou esta história ao longo de toda a vida sem nunca ter percebido a razão para esse bilhetinho que o denunciava ao polícia «amigo», até porque, como referia, era um pouco introvertido e o mais estranho dos irmãos, muito solitário, isolava-se, mas era muito perspicaz em relação a tudo o que rodeava. A infância muito disciplinada e por vezes excêntrica foi, para muitos estudiosos da sua obra, um período marcante nos temas dos seus filmes e levou ao desenvolvimento de alguns traumas que ele geria ao transpor os seus próprios medos para as suas histórias. Toda a vida teve pavor de polícias fardados, não conduzia com medo de ser parado pela polícia e autuado.
O DESENHADOR DE CARTÕES
Era um aluno de mérito e notas altas, com direito a quadro de honra. Os colegas deram-lhe a alcunha de Cocky (o arrogante), mas ao mesmo tempo era o que mais tropelias engendrava para enfurecer os colegas e os professores. Adorava pregar partidas e foi sempre assim toda a vida, divertia-se a contar nas entrevistas as maldades que fazia nos colégios. Por vezes roubava os ovos das galinhas no colégio jesuíta para depois os atirar e esborrachar nas janelas dos quartos dos padres e dos professores.
Explica-se assim, em parte, o seu lado mais irónico, brincalhão, e o suspense como elementos constantes na sua obra. Disse ele numa entrevista: «Eu sentia-me aterrorizado pela polícia, pelos jesuítas, pela punição, por um monte de coisas. Percebe-se porque são também essas as raízes do meu trabalho e histórias que contei nos meus filmes.»
Durante a juventude foi acentuando o seu lado recatado, uma timidez para a qual, ao que tudo indica, a obesidade não ajudava. Quis estudar engenharia e mais tarde ainda chegou a frequentar o departamento de belas-artes da universidade de Londres, ao mesmo tempo que ia ajudando a família no negócio das galinhas e fruta. Em 1913 o cinema em Londres já era o grande negócio do entretenimento, havia centenas de salas onde se exibiam filmes e, sempre que podia, era esse o seu refúgio: ver filmes.
Aos 15 anos, e depois da morte do pai, teve de arranjar emprego. Foi trabalhar para a companhia de cabos elétricos e, como frequentou belas-artes, deram-lhe um lugar no departamento de publicidade. A Primeira Guerra Mundial tinha chegado para abalar a Europa. Só escapou ao recrutamento militar devido à obesidade e, como a empresa onde trabalhava colaborava com a indústria da guerra, provaram ele era mais útil nos escritórios da companhia.
Em 1920 Hitchcock tinha 21anos e leu no jornal que uma das grandes produtoras americanas, a Famous Players-Lasky Company, ia criar um estúdio em Londres. Já era um grande fã do cinema, e o anúncio deu-lhe entusiasmo para tentar entrar no negócio dos filmes. Apresentou-se nos novos estúdios, levando consigo alguns dos cartazes que desenhou com as legendas que na altura se usavam a intercalar as imagens dos filmes mudos. Garantiu de imediato o emprego como desenhador de cartões de legendas dos filmes mudos, passando depois a responsável pelos cenários, escrevendo também as frases e pequenos diálogos nas novas produções da companhia.
Por sorte, em 1923, quando estavam a rodar Always Tell Your Wife e o realizador adoeceu, essa baixa na equipa permitiu a Hitchcock experimentar pela primeira vez dirigir as cenas de um filme e, mesmo sem o nome na ficha técnica, a experiência agradou-lhe. Nessa altura já piscava o olho à pequena e franzina Alma Reville. Eles cruzavam-se no estúdio e Alma era verdadeiramente apaixonada por cinema, trabalhava em produção desde os 16 anos e fazia parte da mesma equipa que coordenava (...)
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