POUCO ANTES da véspera do Ano Novo, a minha mulher e eu deixámos os miúdos com os meus pais e esgueirámo-nos para uma breve escapadela a Havana. Mais do que uma vez senti que tinha aberto uma porta para um universo paralelo.
Cuba, que se estende pelas Caraíbas como uma bandeira emaranhada, fica a pouco mais de 160 quilómetros a sul de Key West, na Florida. Em alguns aspetos, bem podiam ser 100 mil quilómetros. O país vive um período de incerteza pós-Fidel e pós-Obama. Muitos cubanos com quem conversámos citaram a visita do Presidente Obama, em 2016, como um primeiro passo fundamental para a normalização das relações entre os dois países.
No entanto, o otimismo deu lugar a uma espécie de jogo da espera estagnado com muito mais perguntas do que respostas: será que a explosão súbita dos negócios privados (como o AirBnB) na ilha é um sinal do que aí vem ou é apenas uma fachada para o que continuará a ser um regime totalitário? O que vai acontecer agora que Castro já não está no poder? E se eu fosse a Cuba, será que a minha mente capitalista se transformaria em papa?
Tal como muitas pessoas, também eu tinha sido influenciado pelos relatos de que os diplomatas norte-americanos em Cuba tinham sofrido uma série de sintomas misteriosos que incluíam náuseas, perdas de audição, tonturas, perdas de memória e até danos cerebrais. Como possível explicação para o sucedido, tanto os meios de comunicação social como o Departamento de Estado norte-americano divulgaram suspeitas sobre um ataque com uma arma supersónica ou uma arma de micro-ondas. Mas, então, porquê ir a Cuba e mergulhar na incerteza quer diplomática, quer acústica? Porque essa é a razão pela qual viajamos. Como escreveu em tempos José Martí, o poeta e filósofo de Cuba: «Em tempos de crise, os povos do mundo devem apressar-se para se conhecerem mutuamente.» Ninguém consegue prever o que vai acontecer a Cuba nos próximos anos e é por isso que lá devemos ir agora. Visitar o país é como testemunhar uma ave rara prestes a levantar voo.
QUANDO VIAJAMOS para Cuba sentimos uma espécie de chicotada consumista. Aí não há excessos de capitalismo. As coisas são usadas e usadas uma e outra vez, até que acabam por se partir. E depois são arranjadas. O nosso motorista em Havana herdou do pai o Buick Invicta conversível de 1959 vermelho-cereja. Por sua vez, o pai tinha-o herdado do seu pai. O motor ainda era o original. Perguntei quantos quilómetros já tinha rodado. Respondeu-me: «Isso não pode ser medido.»
Há muitas coisas em Cuba que não podem ser medidas. O tempo torna-se escorregadio. Quando chegámos à cidade vindos do Aeroporto Internacional José Martí, fomos instantaneamente mergulhados no turbilhão de uma história fantasmagórica: Plymouth norte-americanos da década de 1950, Lada da União Soviética da década de 1970, Fiat de fabrico polaco da década de 1980, carroças de burros, Peugeot estranhos. Era como se a todo o momento o passado se tornasse presente.
Os cubanos têm uma relação complicada com o tempo. O sistema socialista determina que o tempo não nos pertence: o tempo, como a maior parte das coisas, é um bem partilhado. Deste modo, as pessoas estão habituadas a esperar em filas por qualquer serviço. Estão de tal modo habituadas a esperar em filas que deixa de haver fila. Existe apenas um grupo de pessoas que vive a sua vida, troca dois dedos de conversa e, por acaso, também está à espera à porta de um banco ou numa paragem de autocarro. Quando alguém aparece, pergunta: «Quién es el último?» Há um dedo que se levanta. A fila aumenta silenciosamente e o tempo passa.
Um dos jovens cubanos com quem falámos e que esperava numa fila, encolheu os ombros perante esta inconveniência.
«Sim, há escassez de mercadorias. Não, não é o ideal», disse. «A iniciativa privada é importante. Mas nós não queremos simplesmente copiar o sistema americano – sem ofensa –, no qual o dinheiro é tudo.»
Um dos grandes presentes da nossa curta estada em Havana foi o próprio tempo. Especificamente, não ter acesso constante à Internet. Havana permitiu há pouco o acesso a redes públicas de wi-fi, mas apenas em determinados parques e esquinas. As pessoas têm de comprar um pequeno cartão para terem tempo on-line. E assim, lá nos juntámos, culpados, à noite, à massa de gente no Parque John Lennon (não confundir com o Parque Lenine fora da cidade), encolhidos em torno do brilho dos nossos smartphones. A nova revolução terá começado aqui? E essa revolução vai ter o seu próprio emoji?
Vagueávamos à noite pelo parque porque, em geral, Cuba é um país seguro. Não há praticamente crime ou, pelo menos, é o que o governo cubano diz. Como costuma acontecer, quando se escava além da superfície nem tudo é o que parece: Cuba tem a sexta maior população de presos do mundo. Se não há crime, porque há tantos criminosos? Ou será que não há crime porque todos os criminosos estão na cadeia? Quando questionei o nosso motorista sobre isso, encolheu os ombros: «Há uma velha piada», disse. «Onze milhões de cubanos, cinco milhões são polícias.»
NÃO SEREI O PRIMEIRO a dizer que as ruas de Havana são uma intoxicação. A cidade é absurdamente fotogénica, não precisa de filtros. O nosso AirBnB ficava em Vedado, um bairro residencial enganadoramente calmo com mansões antigas onde também ficam alguns dos clubes noturnos mais movimentados da cidade e a Fábrica de Arte Cubana, uma antiga fábrica de óleo de cozinha transformada num enorme complexo de artes. Na noite em que lá fomos havia um desfile de moda, um concerto e a inauguração de uma galeria, tudo num único evento. Os cubanos são mestres a adaptarem o que têm em algo que é maior que a soma das partes.
A partir de Vedado, caminhámos. Caminhámos pelo Malecón, a avenida à beira-mar conhecida como «o sofá da cidade», onde os jovens acorrem para verem e serem vistos enquanto as ondas do mar batem no paredão da cidade. Passeámos pela parte decadente de Centro Habana, a «verdadeira Havana», como muitas pessoas a consideram.
As pessoas estavam em casa para as festas: o ambiente era festivo. Tínhamos de evitar a água que era despejada das varandas.
Vagueámos pelo Callejón de Hamel, um beco coberto da street art afro-cubana de Salvador González – banheiras com inscrições embutidas nas paredes, murais brilhantes pintados com corpos entrelaçados numa dança. Passámos pela alegria ruidosa de um festival de rumba na rua.
Aqui há festivais de rumba na rua todos os dias? Não me surpreenderia. Na realidade, os Habaneros são das pessoas mais otimistas que já conheci. A maioria dos cidadãos dos países socialistas e pós-socialistas que visitei irradia muitas vezes um cinismo cuidadosamente aperfeiçoado. Os cubanos são exatamente o oposto. Não se alheiam dos problemas do país mas não há tempo para ficar deprimido porque... há um festival de rumba na rua! (E um carro para arranjar, um apartamento para arrendar, ovos para localizar...)
Até Jesus entrou em ação. O Cristo de Havana é uma estátua com cerca de 20 metros de altura, feita de mármore de Carrara, sobranceira à cidade, a ver o mar no cimo de uma colina.
«No Rio, o Cristo deles é assim», diz o nosso guia abrindo os braços. «Em Cuba, o nosso é assim, com um mojito e um charuto.» A bênção cubana.
Somos constantemente interpelados por estranhos: «De onde são?» As pessoas vibram quando lhes dizemos. «Adoro os Estados Unidos. Tenho um primo em Queens. É muito frio, não é? Eu morria! Por favor, diga a toda a gente que Cuba é uma maravilha. Não há máfia, não há guerra. Só mojitos e salsa!» Com a mão no estômago, demonstrou-nos ali mesmo uns passos de dança, com o dedo do pé habilmente a levantar volutas de poeira.
PARA O CUBANO MÉDIO é evidente que a vida não são apenas mojitos e salsa. Todos os dias há que improvisar para sobreviver. Mas enquanto visitantes desta miraculosa ilha, seguimos a pista do Cristo de Havana e bebemos a nossa quota de mojitos. Escorregavam como água. A comida era quase sempre sofrível, mas também não é por isso que se vem a Cuba. Uma pessoa vem para ser arrebatada. Para dançar, para ficar de queixo caído com a mistura de arquitetura colonial e Art Déco, para refletir sobre os murais de Yulier Rodriguez Perez, tristes e alienígenas, para ouvir histórias de um mundo paralelo que, devagarinho, começa agora a convergir com o seu.
E também vem pelo som. Nunca estive num local cuja identidade estivesse tão enredada na sua impressão digital auditiva. O putt putt gutural dos Cadillac de oito cilindros fabricados antes de o meu pai ter nascido; o oceano a crescer e a bater no Malecón; os timbales a acompanharem as conversas nos bares; o rumorejar de uma vassoura na soleira de uma porta; o estrondo dos canhões cerimoniais disparados todas as noites na Fortaleza de San Carlos de la Cabaña.
Na última noite em Havana fomos ver Roberto Fonseca e a sua banda Temperamento ao famoso jazz clube La Zorra y el Cuervo. Para entrar é preciso esperar numa fila antes de descer através de uma réplica de uma cabine telefónica britânica até um pequeno espaço subterrâneo.
Fonseca e os seus músicos chegaram devagar, um a um, cumprimentaram-se e afinaram os instrumentos. Nada de pressa. A música só começou já passava bastante das onze da noite. E, no entanto, quando soou a primeira nota tudo pareceu desvanecer-se: a cidade, a ilha, o oceano, o mundo. O baterista era humilde, incorruptível, generoso. Fonseca subiu e desceu nas teclas como uma gazela. Nas congas, quando chegou o momento o percussionista soltou uma avalancha de ritmo que foi como se todos os átomos da sala começassem a tremer e a dividir-se. Digam-me, existe algum instrumento mais místico que a conga?
Quando, finalmente, a música terminou, o mundo regressou, mudado e sem mudanças. Ainda estamos em Cuba. Respirámos fundo e começámos a aplaudir.