O E-MAIL APARECEU-ME NO ECRÃ ÀS 06H45 DE 24 DE dezembro de 2019. Como sou jornalista, estava acordado, a trabalhar para cumprir um prazo.
«Preciso de um favor seu», dizia a mensagem. «Envie-me um e-mail assim que receber a minha mensagem.»
O e-mail era de alguém que conhecia bastante bem, o pastor da Igreja Unitária da Costa Norte do Canadá, de Vancouver, que a minha família frequenta.
«Olá, Ron», respondi.
Uma amiga, Sharon, estava no hospital devido a um cancro, e ele soube que ela tinha uma cirurgia marcada para essa noite. Será que eu podia recolher alguns cartões de presente iTunes?
«Ela precisa dos cartões para descarregar as músicas e vídeos favoritos para aumentar a confiança na próxima fase da cirurgia.» Ele queria fazê-lo mas estava preso por outros assuntos, explicou. «Eu reembolsá-lo-ei assim que puder.»
Eu era o único em casa que estava acordado, por isso não havia ninguém a quem o contar. A verdade é que, provavelmente, não teria pedido uma segunda opinião. Não me ocorreu que pudesse ser uma burla.
«Okay», respondi.
«Muito obrigado, Bruce», escreveu o meu correspondente. Depois entrou no assunto: eu devia comprar 300 dólares canadianos de créditos doiTunes. (Isto é uma data de música, pensei.) «Preciso que raspe a cobertura cinzenta de cada cartão para revelar o código de remissão, depois tira uma fotografia e envia-os diretamente para o e-mail da Sharon.» E deu-me o endereço.
«Diga-me quando o enviar», escreveu. «Deus o abençoe.»
Deus o abençoe? Somos Unitários. Agnósticos otimistas, quanto muito. A palavra «D» não aparece muito. Uma despedida muito estranha. Assumi que a mente de Ron ainda estava absorta nas difíceis circunstâncias da sua amiga Sharon, que evidentemente era cristã.
«Consigo comprar os cartões por volta do meio-dia e tratar disso hoje à noite», respondi.
Fico muito grato, respondeu seis minutos depois, mas já era muito tarde. «Por favor, pode enviá-los ao meio-dia para ela os usar antes da cirurgia?»
Era uma ocasião esquisita. Mas o que era a minha pequena inconveniência quando comparada com a luta daquela mulher contra o cancro – ainda por cima, na véspera de Natal? Fui até ao supermercado e comprei quatro cartões de oferta. O empregado ativou-os na caixa. Às 09h30 enviei-lhe as fotografias com a seguinte mensagem:
Cara Sharon,
Os códigos dos cartões abaixo irão comprar-lhe música via iTunes.
Estamos todos a torcer por si.
Depois seguiu-se uma véspera de Natal ocupada. Não pensei mais no assunto até que, às 16h30, fui ver o e-mail. Uma mensagem de resposta – com uma gramática estranha – estava na minha caixa de entrada.
«Sharon acabou de me enviar um e-mail a dizer que recebeu os cartões. Estou realmente agradecido por isso. Tenho a certeza de que a vai ajudar muito na luta contra o cancro.»
Mas agora havia um novo desenvolvimento. Aparentemente, a notícia dos cartões tinha-se espalhado na ala de oncologia. Outros pacientes pediam o mesmo a Ron.
«Pode, por favor, arranjar-me mais cartões de iTunes no valor de 500 euros imediatamente? Depois pago-lhe os 800 dólares. Desculpe a inconveniência.
Aquilo era ir demasiado longe. Um amigo era uma coisa, mas desconhecidos numa enfermaria?
Liguei a Ron.
«Hei, Bruce, como vai isso?»
«Ainda vamos a tempo de ajudar aqueles pacientes?», perguntei.
Silêncio. Depois: «Hum, não sei do que estás a falar.»
«Os outros pacientes na enfermaria que também querem música», respondi.
«Bruce.» Uma pausa longa. «É uma burla. Alguém anda a fazer-se passar por mim. Eu deixei um aviso no Facebook.»
«Eu não… o vi.»
Phishing: «O mais fácil e produtivo vetor de ataque usado pelos criminosos», como o descreve um consultor de segurança, é agora tão comum que é praticamente desporto de demonstração nas Olimpíadas dos Burlões. Na verdade, relatos do esquema que descrevi encontram-se na Internet em cinco segundos. Mas nunca me ocorreu procurar. A pergunta é: porquê?
Os indícios de uma burla estavam lá desde o princípio, de tal modo que quando Ron disse ao telefone «É uma burla», houve um súbito reenquadramento, e o desfecho foi uma palmada na testa.
Isso é o cérebro numa ficção bem elaborada, diz Vera Tobin, cientista cognitiva na Case Western Reserve University no Ohio, Estados Unidos: as simpatias e atenção da «vítima» são manipuladas com perícia pela ilusão narrativa.
Os riscos começam por ser pequenos. No meu caso, o primeiro contacto foi modesto e credível. Houve as desculpas atenuantes, o agradecimento adiantado. A partir daí a história desenrolou-se. Mal dei por isso, estava a enfiar a touca.
Os burlões exploram erros de pensamento da mesma forma que os contadores de histórias. Somos «sovinas cognitivos», diz o psicólogo Keith Stanovich, da Universidade de Toronto, «usamos atalhos mentais e saltamos para conclusões sempre que possível». É por isso que Stanovich insiste que a credulidade não é sinal de falta de inteligência. É sinal de pouca «racionalidade», o que é diferente. O cérebro frontal não tem hipóteses, o cavalo já saiu a correr do estábulo com aquele primeiro julgamento rápido.
Os burlões também tiram partido de outros erros cognitivos, como «viés do otimismo». A maioria das pessoas acha que é um pouco encantada, mais sortuda do que a média. Acolhemos uma fábula pessoal de que as coisas deverão correr-nos bem. A possibilidade de sermos endrominados simplesmente não está «disponível» como final feliz.
E depois há o «viés da consistência», que diz que as pessoas tendem
a agir de acordo com o que acreditam ser. Quando recebi o primeiro e-mail, ele apelou à minha noção de que sou um bom tipo, e ali estava uma oportunidade para o provar. «Estava numa missão de boa vontade», disse o polícia que denodadamente escreveu o meu relatório. «E isso a modos que lhe colocou umas palas nos olhos.»
Finalmente, os economistas comportamentais cunharam um termo, «ancoragem», que os psicólogos também usam – o ato de se fiar demasiado num pedaço de informação.
«É difícil às pessoas colocarem de lado uma coisa que já sabem», diz Tobin. «E isso constrange a nossa capacidade de raciocinar.» O burlão fixou-me na mente a imagem de uma enfermaria oncológica, e para tornar as coisas piores eu conseguia ver «Sharon» na minha cabeça porque tinha lá estado – estava ao lado da cama do meu pai quando ele morreu de cancro.
Todos estes fatores podem inclinar as vítimas de cancro a descurarem o que deviam ser avisos gritantes. O pastor não usou o meu nome no primeiro e-mail. Mas talvez estivesse com pressa? (O burlão não usou
o meu nome porque não o tinha. Até que, com a minha resposta, dei-lho.) E os erros de gramática de uma pessoa que eu sabia ser picuinhas com a linguagem? Atribui-os ao stress. Basicamente, li aqueles e-mails através de um filtro que limpou a linguagem e apenas imputou bons motivos.
Se as burlas bem-sucedidas exploram estes desvios cognitivos universais, porque é que não caímos todos neles? De acordo com um relatório de 2020 da Comissão Europeia, até 56% dos europeus foram vítimas de burla ou fraude nos últimos dois anos, e 24% tiveram perdas financeiras. E das pessoas que receberam e-mails de phishing como o meu, apenas 3% caem de facto, de acordo com um estudo recente em 65 países feito pelo gigante das telecomunicações Verizon. Então e nós, pobres de nós. O que nos distingue?
Há a perceção generalizada de que as vítimas de burla são predominantemente pessoas mais velhas, mas isso não é bem assim. De acordo com dados da Federal Trade Comission dos Estados Unidos, os millenials são atualmente mais burlados do que qualquer outro grupo. Contudo, perdem menos dinheiro do que os seniores porque têm menos. Curiosamente, os seniores têm mais probabilidades de serem burlados cara a cara.
O estereotipo de que os solitários são alvos fáceis é verdadeiro. As pessoas solitárias tendem mais facilmente a deixar os burlões colocarem o pé na porta.
Não sou solitário nem millenial. Mas fui apanhado aleatoriamente num grupo que é visto como promissor pelos burlões. A congregação de um ministro. Há indícios de que os burlões visam desproporcionalmente grupos religiosos – embora seja menos claro se as «pessoas de fé» são, na verdade, mais crédulas em relação a estes esquemas. A maioria dos Unitários, diria, são do tipo «confiar, mas verificar». E soube que mais ninguém na minha congregação, dos que foram abordados, foi enganado.
Talvez a credulidade, como acredita o psiquiatra da Universidade de Stanford na Califórnia, David Spiegel, seja uma «caraterística neural», da mesma forma que a facilidade em ser hipnotizado.
«Ingénuo» ou «confiante» também se poderiam aplicar, embora os cientistas sociais prefiram a descrição «insuspeito». E somos «corredores de riscos», física, financeira e emocionalmente.
A psicóloga Lea descobriu que os autodescritos corredores de riscos são as vítimas de burla mais prováveis.
Poderíamos pensar que a ignorância é uma condição para se ser enganado, mas o oposto pode ser verdade. Por vezes o problema é saber demais.
Acontece que o excesso de confiança pode produzir uma espécie de arrogância não justificada, uma leitura obtusa dos acontecimentos quase cómica. Quanto mais sabemos, menos probabilidades temos de pôr em causa a nossa impressão inicial acerca de uma coisa. Na verdade, estava a meio de editar alguns artigos sobre como evitar as burlas quando chegou o primeiro e-mail. Isso devia ter-me feito cheirar um logro a léguas. Mas o certo é que, embora tivesse um conhecimento geral sólido, nunca encontrei aquela burla em particular. Não era um príncipe nigeriano, alguém a dizer que pertencia à Microsoft ou à Apple. Para que é que um bandido quer música. A resposta é, como é evidente, não quer. A razão por que os burlões pedem cartões de oferta de iTunes é porque os códigos são difíceis de rastrear. E, uma vez que os tenham, podem revendê-los.
«Receio que nada possamos fazer», disse o agente do departamento de fraude da Visa depois de ouvir em silêncio a minha história.
«Porque não?»
«Porque não é fraude», respondeu. «O comerciante não fez nada de mal. Você comprou voluntariamente aqueles certificados de oferta.»
O que distingue a fraude de todos os outros crimes é que exige cooperação da vítima, explica a psicóloga Lea. Ou, por outras palavras, a pessoa que é burlada é sempre cúmplice.
Então, o que tirei desta trapalhada toda? Bem, eu tive um «momento» – um frisson de vida, uma memória para distinguir aquele dia dos outros para sempre. E uma história para contar.